A Mesma Coisa em Todo o Lado ao Mesmo Tempo

Roger Schmidt

Pouco ou nada separa o atual Benfica daquele que vinha a ganhar tudo. Mas foi precisamente isso que levou à cristalização do modelo de jogo.

O fenómeno futebol, por ser tão complexo, é impactado por diversos fatores. Nos últimos dias, temos assistido a uma linearidade de raciocínio, que aponta apenas para a saída de Enzo Fernández como o fator único e decisivo desta quebra de rendimento. Alguns “entendidos” na matéria, por sua vez, afirmam que os jogadores não estão bem do ponto de vista físico, baseando a sua suspeita na baixa rotação que Roger Schmidt confere ao plantel – “já não têm intensidade”, dizem eles. Eu discordo, concordando: é tudo isso, mas muito mais. Ao mesmo tempo.

A origem da crise recente do Benfica, foi visível após a paragem para as seleções, aquando do jogo menos conseguido frente ao Rio Ave, que ainda assim levou as águias à vitória por 0-1. Nesse encontro, o Benfica atingiu 26 (!) assinaláveis de recuperações no meio-campo ofensivo, segundo a GoalPoint, o que contrasta com a eventual perda de “intensidade” a que muitos se referem, e que faz ainda menos sentido se pensarmos na semana de férias que Schmidt concedeu a vários jogadores do plantel. Pessoalmente, prefiro olhar para o xadrez do jogo e justificar tal estatística com a forma eficaz como o Benfica pressionou um adversário que teimou em sair a jogar quase sempre curto, especialmente na primeira parte, e não arranjou soluções para se soltar da “teia” que as águias construíram.

Fazendo jus ao título deste artigo, diria que a mesma forma de pressionar não funciona em todo lado, ao mesmo tempo. Nos jogos frente ao Inter de Milão, o Benfica nunca esteve suficientemente articulado para pressionar uma linha de três centrais. Por ironia do destino, o primeiro golo da eliminatória nasceu precisamente duma… pressão falhada: João Mário fecha demasiado dentro e é obrigado a um deslocamento muito grande para chegar até Bastoni que, sem pressão, teve tempo e espaço para progredir e assistir Barella – aliás, pouco antes deste golo, o central italiano é protagonista dum lance idêntico. Pergunto-me se isto é falta de intensidade, porque o movimento repentino de jogadores a correrem que nem uns touros e a roubar bolas não nos absorve o suficiente, ou se, pelo contrário, eles até correm, mas correm mal e para o sítio errado.

O Clássico frente ao FC Porto também nos presenteou um Benfica lento de processos. Aqui, diria que a velocidade que muitos esperariam na circulação dos “encarnados” não aconteceu, não por “falta de intensidade”, mas… de espaços. Que o Benfica amarra os extremos por dentro e dá os flancos apenas aos laterais, já toda a gente sabe. Aliás, ao longo dos últimos anos, isto não aconteceu só com Roger Schmidt, mas também com Bruno Lage e até com Jorge Jesus. Essa falta de imprevisibilidade, por sua vez, tornou previsível a estratégia de Sérgio Conceição para os embates frente ao Benfica, que passa, sobretudo, pelo fecho do corredor central, com os médios dos dragões a “morderem” muitas vezes os adversários de costas – em dezembro de 2020, já havia chamado a atenção para este aspeto, no artigo Benfica, um Ferrari de duas velocidades. A conferência de rescaldo de Sérgio Conceição continua, todavia, bastante atual: compare-se o Benfica de hoje com a análise que o treinador dos dragões fez em 2020 e descubra-se as diferenças…

Sérgio Conceição, no rescaldo do SL Benfica 0-2 FC Porto de 2019/20 (especial atenção aos 0:59)

A constância não consiste sempre em fazer as mesmas coisas, mas aquelas que tendem para o mesmo fim.

Luís XIV

Não podemos negligenciar o peso psicológico que a derrota frente ao FC Porto, as últimas perdas pontuais no campeonato e a desilusão pela eliminação da Liga dos Campeões, acarretam. Ou mesmo a baixa rotação promovida por parte de Roger Schmidt. Mas o problema do Benfica é essencialmente de cariz tático. Fazer sempre a mesma coisa, em todo lado e ao mesmo tempo, leva à cristalização do modelo de jogo, quando, na verdade, este deve estar em constante evolução. Parece um paradoxo como o modelo deve ser construído, mas nunca terminado. Ser identitário, mas também variável. Minimamente previsível, mas substancialmente imprevisível.

Modelo de jogo, para mim […], é fruto dum conjunto de coordenadas, mas porque é uma emergência […] proporciona uma realidade. Para mim, modelo é isso, porque está em aberto. […] É por isso que eu falo em qualidade de jogo, da minha ideia, e que essa evolui conseguindo eu maximizar a redundância concomitantemente com a variabilidade, a redundância é do foro mais do macro, das grandes referências coletivas, depois temos o “meso” e o “micro”! […] O que é balizador da modelação são os macro princípios! […] E como tanto equipa, como jogadores, devemos pensá-los na possibilidade de infindavelmente estarem a evoluir, então ele é aberto.

Frade (2012), em entrevista a Tobar

Esse é o desafio de treinar, segundo Maciel (2012): “reconhecer a necessidade de organização, permitir que esta se transcenda sem se descaracterizar, cristalizar e hipotecar o crescimento do todo (o jogar) e das partes (jogadores, setores…)”. O atual adjunto do Lille aprofunda ainda o tema, ao afirmar que “os Grandes Princípios referem-se aos contornos gerais da nossa identidade. Os SubPrincípios são as partes intermédias que suportam e corporizam essa identidade. Os SubSubPrincípios são os aspectos mais micro, aspetos de pormenor à priori desconhecidos […] Por serem desconhecidos à priori, eu não os posso, nem devo estabelecer previamente, são particularidades que vão surgindo […] Tem de haver muita sensibilidade e recetividade da parte do treinador, no sentido de aproveitar estas emergências de pormenor”. O técnico, que curiosamente até passou pelos sub-23 do Benfica, acrescenta ainda um exemplo, de forma a deixar mais clara a sua posição: “imagine-se, por exemplo, que, em termos ideais, os defesas laterais, nos momentos de organização ofensiva, se devem constituir como apoios à posse, fazendo-o em posições não muito adiantadas, de modo a contemplar também o fecho da zona interior aquando da perda da bola. No entanto, se eu chego a um clube e tenho um jogador como o Maicon, o Marcelo ou o Daniel Alves que, sabendo funcionar desse modo, me trazem também outras coisas, eu tenho de estar sensível para aproveitar e exponenciar aquilo que eles fazem melhor, ou pelo menos aquilo que os diferencia dos restantes e que se constitui como uma singularidade otimizada pelo todo, se o perspetivar com abertura”.

A riqueza do Modelo passa por isso, pela possibilidade de contemplar a novidade sem perda de identidade e simultaneamente sem cristalização.

Maciel (2011), entrevistado por Esteves

Podemos extrapolar o exemplo dado pelo autor para o Benfica atual, tendo como ponto de análise o posicionamento interior dos extremos e exterior dos laterais, cuja variabilidade na relação é mínima, e o quanto isso “prende” a equipa e a impede de encontrar espaços através dos quais possa acelerar e mudar a velocidade do jogo. Podemos, ainda, questionar-nos acerca do desconforto de alguns destes jogadores: Grimaldo raras vezes conduz por dentro, ele que é capaz de tirar vários adversários da frente em espaço curto, quando protagoniza incursões interiores; e, se quando Bah joga, apresenta-se confortável com a verticalidade e velocidade que Schmidt lhe pede, já Gilberto tem a tentação subconsciente de travar o jogo mais vezes e procurar tabelas curtas por dentro, ao passo que, quando está encostado à linha, sente-se como um peixe fora de água quando tem de encarar adversários no 1 vs. 1.

No vídeo em cima, podemos observar um comportamento bastante “fechado” da equipa do Benfica:

  • Quando a bola está no corredor central, os extremos estão sempre por dentro, enquanto os laterais são os únicos que ocupam os flancos.
  • Em situações em que o espaço está por fora, os extremos só caem lá, eventualmente – e pontualmente -, se a bola rodar para o seu corredor.
  • O setor defensivo do Benfica, por ter os laterais abertos, obriga a primeira linha de pressão do adversário a esticar-se em largura. Assim, é possível ligar jogo entre setor defensivo e intermédio.
  • O mesmo não se verifica mais à frente: as defesas adversárias permanecem fechadas, pois os jogadores do Benfica também já estão por dentro. Por esse motivo, não abrem espaços à largura (por exemplo, entre centrais e laterais).
  • O facto do Benfica ter muitos jogadores no corredor central, obriga-os a receber várias vezes de costas, ao passo que, se estivessem mais abertos, receberiam de perfil, o que lhes permitiria ver o campo todo e antecipar eventuais pressões adversárias.
  • As constantes receções de costas também retiram profundidade ao Benfica. Com mais jogadores junto à linha e orientados de perfil, criar-se-iam situações mais propícias para movimentos de rutura em diagonal, de fora para dentro.
  • De realçar que, taticamente, é também isto que leva/levou o Benfica a pressionar muito forte após perda: como a equipa tem muitos elementos no corredor central, caso se dê aí a perda, os jogadores estão bastante próximos e facilmente recuperam a bola.

De certa forma, Schmidt criou um modelo de jogo “a régua e esquadro”, com alguns aspetos de pormenor já previamente definidos, em que os jogadores não são livres o suficiente para lerem as incidências e expressarem o seu próprio jogo. O espaço a ser ocupado não tem por base um critério circunstancial (por exemplo: se está livre, alguém deve explorá-lo), mas sim uma regra que não leva em consideração o caos do momento, o posicionamento do adversário, do colega, da bola… no fundo, o tempo e o espaço nos quais as ações se desenrolam. Carvalhal (2003, cit. por Tavares, 2003) discorda deste modus operandi, ao optar por uma “desordem ordenada, porque há trocas de posição, há uma certa flexibilidade dos jogadores se movimentarem, dentro de uma determinada ordem. Aquilo que parece caótico ao olho às vezes não é, é organizado”. Lopes (2005) remata, em jeito de conclusão, dizendo que “o jogo reveste-se então de duas faces da mesma moeda, o lado construído (dos princípios) e o lado natural (da imprevisibilidade)”. Como agravante, podemos ainda apontar o facto do jogador mais desequilibrador e imprevisível do Benfica não ser, de momento, um dos imprescindíveis do seu técnico: David Neres. Sim, porque a imprevisibilidade reside, em último caso, na individualidade, e o canarinho é, indubitavelmente, o elemento mais imprevisível das “águias”.

Em 2017, Maciel expôs a sua opinião sobre a rigidez das supracitadas regras, dizendo que “o detalhe e o que emerge como novidade deve ser uma emergência contextualizada […] Se assim não for, como penso suceder, sempre que o processo depende da análise dos adversários, os jogadores e respetivas equipas ficam amarrados a planos – seja lá o que isso for, em vez de estarem ligados a uma ideia e ligados pelas ideias dessa Ideia. Em vez de um processo de treino potenciador da aquisição, configura-se como um treino de inquisição (“atacamos por aqui e por ali”; “há espaço aqui e ali”; “fazemos a jogada x quando eles estão posicionados assim”…). Um processo que dá origem inequivocamente a um jogar mais pobre na sua intencionalidade, e sempre muito mais dependente do opositor do que da própria equipa“.

O futebol atual reflete os atuais valores da sociedade, onde chegámos a ser ousados o suficiente para tentar controlar o que é incontrolável. A visão demasiado “quadrada” e esquematizada do engenheiro Roger Schmidt pode levá-lo a uma exploração exagerada do corredor central quando, na verdade, o jogo interior é tão pobre quanto for o exterior. Na variabilidade é que está o ganho, desde que nunca se perca a identidade.

O jogo de qualidade tem demasiado jogo para ser ciência, mas é demasiado científico para ser só jogo.

Frade (2004)

Bibliografia

Frade, V. (2004). Notas de Curso de Metodologia de Futebol II. FCDEF-UP. Porto.

Frade, V. (18 de Janeiro de 2012). Entrevista a Vítor Frade. (J. B. Tobar, Entrevistador)

Lopes, M. (2005). A construção de um futebol. Que preocupações na relação treino-hábito dentro de uma lógica de Periodização Táctica/Modelização Sistémica? (Dissertação, Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física, 2005) (pp. 4-5). Porto: FCDEF-UP.

Maciel, J. (15 de Setembro de 2011). Entrevista de Luís Esteves a Jorge Maciel. (L. Esteves, Entrevistador)

Maciel, J. (Dezembro de 2012). A insustentabilidade do atrevimento e a Sustentabilidade Nob(r)el da Periodização Táctica.

Maciel, J. (2017). Estratégia?! A Minha Avó Sempre me Dizia: “cuidado, não confundas o… com as calças”. Textos Prof. Vítor Frade.

Tavares, J. (2003). Uma noção fundamental: a ESPECIFICIDADE. Como investigar a ordem das “coisas” do jogar, uma espécie de invariância de tipo fractal. Monografia de Licenciatura (não publicada). FCDEF-UP. Porto.

Sobre Yaya Touré 36 artigos
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5 Comentários

  1. A pergunta que resta fazer é: saberá Roger Schmidt adaptar-se, e ao seu modelo de jogo, para evitar tornar-se completamente previsível?

  2. Desculpem, mas este texto é bué injusto.

    Eu também concordo com a ideia de que o modelo de jogo do Schmidt é monocórdico (sempre me pareceu assim desde que o Leverkusen atropelou e desfez completamente um excelente Benfica de Jesus) e isto tem diversas consequências. A principal, para mim, é que a equipa nem sempre entende que isto não se resolve apenas com o pé no acelerador.

    Mas no fundo é apenas uma opinião, aquilo que gosto mais em relação àquilo que gosto menos. Uma ideia mais rígida VS. uma ideia menos rígida. Quem está certo? Ninguém. É como quem gosta de bifes com batatas fritas ou bifes sem ovo-a-cavalo com arroz branco. O autor do texto pode ir buscar os gurus que ele bem entender para justificar a sua opinião/sentimento sobre o jogo, que isso não muda grande coisa.

    O certo, mesmo para quem não é um total entusiasta do Schmidt, é que ele montou uma equipa que ganhou a larguíssima maioria dos jogos. E não ganhou apenas por ganhar, na maioria destas vitórias, mesmo contra equipas de elevada valia, ganhou com superioridade evidente e com a rara capacidade de divertir e dar prazer. Isto é algo que eu relevo bastante. Não me interessa nada quantos títulos vai o Benfica vencer, o que é certo é que tem pouquíssimas derrotas, o melhor ataque, a melhor defesa do campeonato, e o trio da frente leva quase 60 golos em conjunto. Pode até ter algumas deficiências que aqui apresentam mas quantas equipas não têm quase pontos fracos? Uma, duas ou nenhuma?

    Portanto, um artigo a roçar o ressabiamento e, no fundo, a vir defender – em surdina – a ideia de que os treinadores portugueses são os melhores do mundo e bla, bla, bla. Mas é engraçado o autor vir aqui com citações do S. Conceição, uma espécie de treinador com umas palas do camandro que, ou consegue limitar os adversários em transição defensiva/organização defensiva ou leva chocolates incríveis de Gil, Famalicão, C. Brugge e uns quantos mais. Só faltaram aqui umas ideias soltas do rei do modelo aberto e do “o menos importante é o treino”, o Rui Vitórias.

    • Olá Edson,

      Obrigado pelo comentário. De certa forma, não me surpreende o facto de discordar do artigo, visto que nunca teceu qualquer comentário que alguma vez concordasse com o teor dos mesmos ou que, por outro lado, discordasse, mas com uma exposição de argumentos que não tivesse sido besuntada de arrogância.

      Podemos gostar ou não gostar duma ideia de jogo. O nosso sistema de valores pessoal não nos dá legitimidade de hierarquizar ideias de jogo, da melhor para a pior. Podemos, sim, medir a sua riqueza. Uma ideia é tanto mais rica quanto variável na sua redundância, tal como descrito no texto. Isto remete-nos para a metodologia de treino: se esta permitir a criação de padrões, mas sem nunca se fechar ao inopinado, então estará sempre pronta para o caos do jogo, daí mais rica pela forma como é operacionalizada.

      A ideia de Schmidt não está, de todo. É fechada em si mesma e, com o passar do tempo, a ausência de estímulos novos no treino, juntamente com o aperfeiçoamento das estratégias por parte dos adversários, leva a que esta cristalize. Ainda assim, haverá sempre um mínimo de imprevisibilidade, até pelo facto de os jogadores do Benfica serem individualmente superiores aos dos adversários no campeonato, o que torna a equipa favorita na maioria dos desafios. Mas isso não significa que esta jogue bem, mesmo ganhando, pois não? E foi isso que ficou espelhado numa fase mais adiantada da época, em que o Benfica continuou a “chover no molhado”, mas em que apanhou Inter – Porto – Inter. As dificuldades ficaram evidentes e estão muito relacionadas com a anulação do jogo interior do Benfica, ainda que esse não seja o motivo único.
      Deixo ainda mais um tópico para reflexão: quando Bruno Lage pega na equipa do Benfica, há um jogo em Frankfurt em que se notaram sinais de estagnação. Podíamos dizer – em surdina – que o Benfica tinha sido muitíssimo bem sucedido até aí, certo? Mas isso não evitou a catástrofe que viria a seguir. Este artigo não teria sido escrito se o Benfica tivesse tido exatamente os mesmos resultados contra Porto e Inter e até Chaves, mas sendo derrotado de outra forma.

      Não estou aqui a fazer favores aos treinadores portugueses, a não ser partilhar ideias que façam estes refletir. Mas, pelos vistos, nem todos os leitores assíduos do Lateral Esquerdo têm massa cinzenta suficiente para entender o que eu escrevo.

      Cumprimentos

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