André Villas-Boas: O Salto Quântico

Os sócios do FC Porto demonstraram, com toda a clareza, diga-se, que sabem do impasse (do bloqueio, se quisermos) que assola os dragões de há vários anos a esta parte. E se nos centrarmos nas duas figuras centrais das últimas sete temporadas (as que permitiram que a gestão agora cessante continuasse em funções por esse período), se esmiuçarmos as características ideológicas e psicológicas dessas duas personagens marcantes da mística, compreenderemos a profundidade desse mesmo impasse. Falamos, obviamente, não só de Pinto da Costa mas, obviamente também, de Sérgio Conceição. Duas figuras, lá está, intimamente ligadas a um modus operandi que conquistou hegemonias assentando num lado emocional, de demonstração de força, de carácter, de atitude competitiva e até de agigantamento perante a adversidade. E olhando para o retrato do futebol nacional de à 42 anos a esta parte, não admira que essas características tenham estado um passo à frente da letargia que assolou (em boa parte desse tempo) Benfica e Sporting. Foram então características associadas a um extremo sucesso desportivo, o que as levou a serem consideradas como imperativas para o clube como o FC Porto.

E ninguém, ao longo dos anos, encarnou essas facetas como Sérgio Conceição. Flash Forward até 2017, quando Conceição se sentou na, também sua, cadeira de sonho, e começaremos a encontrar uma panóplia de ideologias, ideias, atitudes e reações que acordaram os dragões de um período onde haviam sido ultrapassados pelo maior rival. E como sempre, a solução passou por um regresso às origens, por um regresso às atitudes, valores e crenças que foram a pedra basilar do crescimento, do sucesso e do agigantar do clube. E foi assim, com a emoção como gasolina, que o Porto fez das tripas Conceição para se tornar ultracompetitivo na Liga e na Europa. Um percurso de sucesso, diga-se, mas também de oscilações e algumas desilusões. Não cairemos pois, na tentativa de explicar vitórias com ideologia e derrotas com a falência desta, pois o discurso tornar-se-ia monótono e não se compreenderia a profundidade do impasse. Mas a verdade (pelo menos a que o autor destas linhas consegue discernir) é que aos valores que o FC Porto tem como imperativos para chegar ao sucesso lhes faltou uma dose de certeza, sobriedade e controle mental, para uma maior taxa de eficácia.

Características que, curiosamente, os sócios encontraram em André Villas-Boas para a sucessão de Pinto da Costa. Muito provavelmente movidos pela catastrófica situação financeira do clube, os sócios votaram pela realidade e não pela emocionalidade, demonstrando que compreendem o impasse entre os valores de sucesso do passado e as realidades do presente que condicionarão os sucessos do futuro. Compreenderam-no, por certo, com maior ênfase na situação económica impossível de ignorar, mas terão de o compreender também na situação desportiva (no que ao futebol diz respeito). É que a ideologia de Sérgio foi nuclear para tirar o clube do marasmo e letargia futebolística em que se encontrava. Mas a gasolina da emocionalidade encontrou sempre barreiras que nem um treinador extremamente competente como Sérgio Conceição (não, este texto é tudo menos uma crítica cerrada ao ainda treinador do FC Porto), que nem um treinador extremamente competente e com uma capacidade evolutiva enorme, dizia, conseguiu resolver. É um facto. Ou são dois, até. Sérgio Conceição vive, dorme e come à procura da melhor maneira para alcançar o sucesso. Mas é também um facto que a equipa (apesar de ter atingido esse sucesso várias vezes) mostrou algumas condicionantes de ordem mental (nomeadamente na finalização). E Conceição nunca negou esse facto. Foram até várias as conferências onde dissertou sobre o fenómeno de a equipa ser sempre extremamente competitiva, de ombrear com plantéis e orçamentos infinitamente superiores, mas raramente conseguir aquele equilíbrio emocional, aquela certeza vencedora que lhe permitiria um… salto quântico.

E este é um impasse para o FC Porto e para André Villas-Boas. Por um lado, o clube não pode perder a identidade e os valores (daí André ter tido sempre em conta a situação e o possível interesse de Conceição em continuar) mas tal como na gestão da SAD e na forma algo primitiva e rudimentar como o clube era dirigido, é necessário um salto quântico na ideologia futebolística do clube. Repito: não será na rotura total com o passado mas na sua manutenção e transcendência que o FC Porto encontrará espaço para evolução. Não deixarão os azuis-e-brancos de ser uma equipa emocional mas também não se poderão esquecer que é a mente que tem de controlar a emoção e não o contrário. É que quem se esquecer da emoção como a gasolina para trazer as ideias ao físico cairá em letargia, mas quem as enfatizar como solução para tudo terá períodos oscilantes entre conseguir o que persegue ou criar oposição a esses desideratos. Um exemplo disso mesmo foi o campeonato desta época onde a solução evidenciada pelos adversários do FC Porto nos jogos de campeonato foi a de igualar essa força, essa atitude, essa intensidade. E quando o conseguiram, em vários períodos de vários jogos onde os dragões perderam pontos, o FC Porto perdeu o controle emocional, a clareza, a certeza, tornando o jogo efectivo que Sérgio Conceição criou ao longo destas sete épocas numa sessão de repelões e expulsões que atesta os efeitos da emocionalidade excessiva – a tal que descura as certezas mentais que controlam as emoções.

Assim sendo, uma das distinções que esta nova gestão da SAD terá de fazer é a dos prós e contras da emocionalidade que, não só, equilibra jogos e forma equipas competitivas, mas também a limita na execução e no salto não dado para a mesma conseguir materializar excelentes e competitivas exibições em vitórias que, por exemplo, poderiam ser claras se não houvesse medo do sucesso (Barcelona e Arsenal nesta época, e Chelsea e Atletico Madrid anteriormente são alguns exemplos). E a palavra-chave que terá de ser irradiada do clube será essa mesma: medo. Isto porque a excessiva emocionalidade, por mais que se mascare, é sinal de falta de certeza, falta de clareza sobre o resultado final. E essa é a definição de medo. Medo da consequência e sinal subconsciente que cria oposição à ideia que se quer criar. E podemos imprimir força emocional para (tentar) transcender o medo de resultados negativos, mas a consequência disso ficará visível sempre que um jogo saia do controle que a equipa definiu como a sua margem de conforto. Daí que o facto de o FC Porto de Sérgio Conceição ter andado quase duas épocas inteiras atrás do prejuízo (por via de desvantagens pontuais) que o Benfica, na época passada, e que o Sporting, nesta, lhes criou, tenha contribuído para um desgaste emocional que foi irreversível (e que nem a conquista da Taça atenua). É que jogar sempre no fio-da-navalha quando a única arma é a emocionalidade foi um risco que Conceição correu. É um facto que faltou o equilíbrio e a tranquilidade por onde emergem as melhores decisões e é um facto que para Sérgio foi sempre um dilema encontrar esse equilíbrio sem perder a competitividade que acha imperativa. Mas é também um facto que esteve sempre atento a isso, algo que soubemos em variadas conferências de imprensa onde tocou no assunto. Sendo também um facto (ufa!) que nunca o conseguiu, algo que fica provado pela sua própria e individual dificuldade em controlar certas reações a certas adversidades.

Um retrato que nos remete para a necessidade do FC Porto ser um clube que age apoiado na sua certeza vencedora ao invés de estar sempre, e constantemente, a reagir como se não pudesse suportar a ferida imensa que se abre sempre que as coisas não correm de feição. De outros clubes, e até do próprio Porto, se conhecem histórias de sucesso que se escrevem depois de períodos de algum ou extremo insucesso. Repare-se no período que se abriu depois do FC Porto estar 19 anos sem ganhar e que abriu o espaço por onde emergiram Pinto da Costa e Pedroto. Repare-se no período por onde emergiu José Mourinho depois do FC Porto perder a Liga por três anos consecutivos. Já para não falar do espaço que o insucesso abriu à chegada de um irreverente jovem cheio de paixão por um clube que se confunde com a sua própria identidade e vida. Não, o insucesso não é uma meta, não é um desejo – e nunca o poderá ser no Estádio do Dragão e na cidade do Porto. Mas também não é algo que tenha de deixar o clube tão tenso ao ponto de se jogar sempre no fio-da-navalha e de não se conseguir dar os saltos necessários para a evolução do clube a nível europeu. E se o FC Porto ordenar as suas ações por identidade, mente, emoções e físico, isto é, se for esta a ordem pela qual controla as suas ações, se fizer um esforço para fazer evoluir a sua identidade (sem se separar dela totalmente) as suas ideias serão mais claras e controlarão melhor as emoções necessárias a trazer os seus objectivos ao físico. Num esforço real para se erradicar toda a cultura fear based do clube, os dragões arranjarão espaço para replicar (e quem sabe transcender) as épocas de maior sucesso do clube – nas quais se agiu por certeza de vencer e não se reagiu por medo de perder. Foi essa a cultura dominante dessas épocas de sucesso europeu, e foi esse o grande travão a um excelente treinador que tirou o clube da letargia, e que o estabilizou no seu rumo habitual, mas que acabou vítima da sua algo limitada escala de emoções para dar esse salto quântico, deixando o desafio ao novo presidente de não perder o que de bom se viu mas também a imperatividade de o fazer evoluir.

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