Simeone e o (inacreditável!) treino defensivo de Félix

Sim, é verdade, o impensável aconteceu: João Félix foi visto a treinar pelo Atlético, já a 100 porcento e, imagine-se, Simeone construiu um treino em que todos os jogadores tinham que atacar e defender, incluindo situações de 1v1 onde Félix foi visto a executar ações que não são propriamente a sua imagem de marca. Um clip de 30 segundos mostrou o jovem português nestas diferentes tarefas, e houve quem conseguiu concluir mil e uma coisas através de um vídeo curto, editado e sem grande contexto de um treino do Atlético Madrid. Ora, passando do mediatismo que este vídeo teve nas redes sociais, imprensa escrita e visual, vamos àquilo que interpreto do contexto deste (não) assunto, e das diferentes visões que fui lendo e ouvindo sobre este fenómeno (isto tudo passa, claro, da minha interpretação do exercício e do contexto do treino, sem poder ter certezas de nada através do tal clip de 30 segundos):

O exercício:

O Atlético Madrid tem 12 jogadores nas seleções nacionais. Assumindo que um plantel é composto por 27/28 jogadores, quase metade dos jogadores estão indisponíveis, muitos deles fazem parte do onze inicial, o que condiciona o treinador não só no trabalho do modelo de jogo, que está sempre dependente das suas individualidades, e também da parte estratégica para o próximo jogo, visto que os principais intervenientes não estão presentes no treino. Neste tipo de situações, a minha (curta) experiência e conhecimento diz-me que os treinadores optam, muitas vezes, por tentar trabalhar coisas que não têm tempo/disponibilidade para o fazer durante a época: cenários muito específicos do jogo, ações muito pormenorizadas, jogos reduzidos e competitivos que consigam motivar os jogadores que ficaram com o plantel sem que quem não está presente perca conteúdo aquisitivo para o resto da época e para o próximo jogo.

Este exercício parece-me ser um belo exemplo disto que refiro. Os dois primeiros momentos em que Félix aparece a defender as linhas da área são exercícios muito conhecidos de técnica individual defensiva, mais propriamente do momento de defesa do cruzamento e de remate e encurtamento de espaço para quem tem a bola. Defender nestas zonas não é fácil, e o foco do defesa passa por tentar bloquear a bola (seja remate ou cruzamento) sem permitir que o seu movimento abra demasiado espaço para um cruzamento ou remate. Quantas vezes vemos lances em que o defesa vira costas ao cruzamento e acaba fintado, ou que extende demasiado a perna sem necessidade e um remate dentro da área acaba por passar entre as pernas dele e só termina no fundo da baliza? Ora, este exercício, muito específico, trabalha esses momentos do jogo, que muitas vezes são ignorados ou desprezados por sorte ou azar mas que no final do ano custam dois, três ou quatro golos que podem significar muitos pontos preciosos perdidos na liga. Ao defesa, pede-se que de passos curtos, sem se comprometer muito e quase sempre com o pé mais perto da baliza para evitar a rotação do corpo. Mais uma vez, é o tipo de exercício feito na pré-época ou nas paragens de seleção e que acaba por ser feito apenas um par de vezes ao longo de todo o ano para colocar os jogadores em situações que se vão passar quase todos os jogos, mas que não são tão importantes para o coletivo para serem trabalhadas numa semana de jogo com muito conteúdo aquisitivo para o grupo.

Para quem acha que é um exercício feito estritamente por “treinadores defensivos” como Simeone, campeão da La Liga, é, tantas vezes, apelidado, deixo aqui o mesmo exercício (ou partes dele) feito por dois treinadores muito conhecidos pelo seu futebol ofensivo e de qualidade: Pep Guardiola (a explicar essas mesmas ações a um dos seus defesas) e Marcelo Bielsa, com um exercício muito semelhante na linha da área.

João Félix, Simeone e o Atleti:

Parece-me óbvio que só estamos a ouvir falar tanto deste vídeo porque se trata de João Félix, o seu regresso de lesão e uma jovem estrela do futebol europeu, de Simeone, um treinador muito controverso entre os adeptos de futebol, e do Atletico Madrid, uma equipa desprezada e insultada por muita gente mas que ano após ano garante os seus objetivos. Félix não tem tido anos fáceis no Atlético, onde por culpa própria, por culpa de lesões e pelo contexto onde está inserido ainda não conseguiu ser regular o suficiente para se assumir como estrela da equipa e jogador diferenciador da equipa de Madrid. Com a chegada de Griezmann tem-se falado da perda de espaço de João Félix, algo que não acredito e que o próprio Simeone já referiu que conta com Félix para ser muito importante esta época. O timing deste vídeo do treino levou a que muita gente insinuasse que Felix vai jogar na posição x, que devia era treinar com bola e que não faz sentido um jogador destes ser defesa num treino.

Seja no Atlético, no Barcelona, na Lazio ou no Carcavelos, existem momentos do treino em que todos os jogadores atacam, e todos os jogadores defendem, não tendo nada a ver com o modelo de jogo específico da equipa, mas sim com a natureza do jogo de futebol. No jogo, todos os jogadores atacam, e todos os jogadores defendem. Irá Félix passar muitas vezes num jogo em situações e contenção defensiva num 1v1 a proteger a sua baliza? Não, a sua posição e os terrenos que ocupa são diferentes e não o colocam nessas situações muitas vezes. Mas a grande questão que se faz, voltando ao contexto deste treino específico é: e se Félix, Griezmann, Suarez ou Correa, no meio do caos do jogo, forem colocados numa situação destas, aos 90 minutos, num jogo em que ganham por 1-0 e os três pontos são importantíssimos para os objetivos da equipa? Tem que estar preparados? Claro! Esse é o grande objetivo de qualquer treino, preparar os jogadores para situações específicas ou mais gerais do jogo, seja com ou sem bola, seja um avançado ou um guarda-redes, tenha custado 1 ou 120 milhões de euros.

Para terminar, deixo uma grande intervenção do jornalista Luís Martins, no canal 11, onde aborda este assunto de um ponto de vista cultural e que explica muito da polémica que se surgiu sobre este assunto, sendo um lance muito normal de qualquer ambiente de treino e que explica um pouco o porquê do pouco acesso aos treinos que os treinadores dão à imprensa desportiva:

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Rodrigo Carvalho. 26 anos, treinador adjunto-analista nos San Diego Loyal, EUA. @rodrigoccc97 no Twitter.

2 Comentários

  1. Óptimo texto, Rodrigo! Tive oportunidade de acompanhar o pequeno escândalo em torno deste vídeo no Twitter. Mesmo entre gente que sabe indubitavelmente de futebol, não deixa de ser curiosa a dificuldade que têm em sair das suas bolhas de preconceitos. O que interessa, na verdade, é confirmar aquilo que acho que já sei e entre quem pensa como eu. A lógica em causa é tão simplista como isto: como eu sei que Simeone é um treinador”defensivo”, estes 20 segundos são representativos do seu treino; como consequência, Simeone e o seu trabalho são desprovidos de qualquer mérito. Felizes dos que têm tantas certezas. Aposto que quem trabalha profissionalmente no futebol – no treino, mas também na observação – deve ver as coisas de forma menos evidente. Desde logo ao não cair no erro de achar que os adversários, até aqueles que não partilham as suas ideias mais gerais sobre como jogar, serão facilmente derrotados

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