Formação em Portugal

Na manhã de sábado, falava eu ao telefone com o Maldini sobre um dos grandes problemas da formação do momento. Problema esse que se verifica cada vez mais devido à crescente procura dos “clubes grandes” por parte dos pais. A esses clubes os pais reconhecem vitórias, sobretudo. Ora veja, existem neste momento dois grandes polos no futebol praticado por crianças: 
– O das equipas grandes. Cada uma com 4, 5 equipas por escalão a multiplicar pelas escolas de formação com outros nomes mas com a patente do clube mãe. Nessa realidade, os pais optam pelo nome do clube por saberem que lhes garante vitórias, com o sonho de um dia os filhos chegarem aos escalões principais desses clubes (Juvenis, Juniores), e por fim assinarem pela equipa profissional. Por isso, os clubes grandes secam todos os clubes à sua volta, garantindo por escalão a volta de 60 jogadores de grande qualidade (para o escalão em questão, nesta fase específica da sua formação), mais outros tantos por cada escola patenteada com o nome de um grande.

– O das outras equipas. Sem jogadores de qualidade que sobrem, ficam literalmente com os que ninguém quer. Têm de fazer verdadeiros milagres para formar equipas, e pegar até em quem não tem tanto gosto pelo jogo para conseguir preencher todos os escalões. No máximo conseguem juntar dois jogadores de qualidade (para o escalão em questão, no momento em questão). Mesmo os que estão no espaço geográfico do clube (residência, escola) preferem ir para os grandes.

Disso resulta o desnível verificado nas provas oficiais das respectivas associações de futebol do país. Basta olhar-se para a classificação de cada campeonato, e perceber-se que os grandes têm uma média “impossível” de golos marcados, resultante das diferenças que existem entre os jogadores dessas escolas, e o dos jogadores que os outros não conseguem ter. As diferenças de resultado nos jogos são de dez golos para cima.

Agora coloque-se você na posição dos pais. Ganhar todos os jogos por goleada, ou perder a grande maioria por goleada? A escolha parece-me lógica. O Maldini relata-me que ele (que tem um menino a jogar num clube grande) não acha graça nenhuma aos jogos que vai ver. Nem os pais. Que ele até tem preguiça de levar o miúdo todos os dias de manhã aos jogos, por já saber o resultado. Os pais dos miúdos da equipa dele já nem festejam os golos… Mas a minha preocupação não é com o Maldini, nem é com os pais. É o desenvolvimento das crianças que me importa. O que aprendem as crianças quando ganham um jogo por 10-0? Que competências é que eles desenvolvem num jogo tão desnivelado quanto esse? Semana sim, semana sim, o mesmo resultado… E os que perdem pelos mesmos números todas as semanas?

Agora coloco-me eu no papel do treinador de uma das equipas grandes, nos escaloes principais da formação. E aí, de 25 jogadores vou buscar 15 a outros clubes, que não estiveram a competir com os melhores. Que não ganhavam sempre por dez a zero. Alguns deles até perdiam sempre nas primeiras fases de formação. O que correu mal com as centenas de jogadores que até então eram os melhores (pelo menos em potencial) para o futuro?! Falta de competitividade. Esforçar-se para conseguir o resultado faz parte do progresso individual do jogador. Chegar ao limite e ultrapassa-lo, chegar a um novo limite e lutar por o ultrapassar novamente. Não é tudo, e não terá sido o único problema. Mas é certamente um dos mais graves.

As associações de futebol podiam tomar algumas medidas no sentido de zelar pelos interesses dos jovens jogadores. Dos futuros craques que ali começam. Mas para o fazer, devem perceber que para os jovens evoluírem tem de haver competição. Eles devem ir para o jogo competir. Devem ter dificuldade para conseguir o resultado, porque sem dificuldade não há evolução. Poder-se-ia avaliar um conjunto de normas (como campeonatos de elite, ou redução do número de equipas/jogadores inscritas/os por cada clube), que vão contra os interesses financeiros dos clubes e das associações. Mas há regras que podem ajudar a mudar o jogo sem tocar em tais interesses, se quem pensa e trata do futebol  de formação estiver aberto à mudança. Na Noruega existe uma regra no futebol das primeiras etapas de formação, que dita que quando a diferença no marcador é superior a 3 golos (3-0, 4-1, 5-2, etc…) a equipa que ganha passa a jogar com menos um jogador em campo, até se verificar (ou não) novo nivelamento do resultado (diferença de apenas dois golos). Com uma regra simples garantem algumas coisas:

– Maior competitividade nos jogos;
– E não havendo, garantem mais condições para uma equipa inferior chegar ao golo e também para não sofrer;
– Garantem um estímulo competitivo mais adequado aos jogadores menos evoluídos;
– Garantem um estímulo competitivo mais adequado aos jogadores mais evoluídos;
– Garantem a descentralização dos miúdos, porque mesmo no clube da zona conseguem “competir” contra os grandes (e os pais olham muito para isso);
– E com a descentralização garantem um contexto mais rico e de maior competitividade para todos os jogadores, e com isso uma maior evolução dos mesmos (que é afinal o objectivo de todos);

Simplesmente genial, não acham?

 No futebol de sete onde existe maior probabilidade de se chegar a resultado avultados, pelas dimensões do terreno, seria interessante uma regra deste género, ou não?

PS: Não confunda o catalogar de jogadores (grande qualidade/os que ninguém quer) com um preconceito para os miúdos. Com o dizer de: este chega para isto, aquele nunca vai chegar. Existem, de facto, diferenças técnicas e físicas marcantes que fazem desequilibrar os jogos nestes escalões, sobretudo quando uma equipa tem 15 jogadores de grande nível técnico e físico para a idade. Por aqui, entende-se que essas diferenças se reduzem com o tempo. Por aqui sabe-se que em muitos, muitos, muitos casos os jogadores que estão na frente naquele momento são ultrapassados por alguns que não davam um pontapé na bola até então. Mas causa-nos transtorno e depressão ver tanto talento em fases precoces ir pelo cano, por nada…

Sobre Paolo Maldini 3828 artigos
Pedro Bouças - Licenciado em Educação Física e Desporto, Criador do "Lateral Esquerdo", tendo sido como Treinador Principal, Campeão Nacional Português (2x), vencedor da Taça de Portugal (2x), e da Supertaça de Futebol Feminino, bem como participado em 2 edições da Liga dos Campeões em três anos de futebol feminino. Treinador vencedor do Galardão de Mérito José Maria Pedroto - Treinador do ano para a ANTF (Associação Nacional de Treinadores de Futebol), e nomeado para as Quinas de Ouro (Prémio da Federação Portuguesa de Futebol), como melhor Treinador português no Futebol Feminino. Experiência como Professor de Futebol no Estádio Universitário de Lisboa, palestrante em diversas Universidades de Desporto, Cursos de Treinador e entidades creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Autor do livro "Construir uma Equipa Campeã", e Co-autor do livro "O Efeito Lage", ambos da Editora PrimeBooks Analista de futebol no Canal 11 e no Jornal Record.

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