No te vás, chaval! O elogio da inteligência no futebol

 

A roleta mais espantosa da história do futebol.

Estávamos em 2003. Depois de uma autêntica vassourada no balneário (nesse verão saíram jogadores que tinham marcado indelevelmente a pior época da história do clube como Frank de Boer, Alfonso, Patrick Anderson, Geovanni, ironicamente Juan Román Riquelme, homem que viria a construir nos anos seguintes, no Villareal um dos mais lindos projectos da história do futebol espanhol contemporâneo, nascido por sua obra, graça e génio e morto na marca dos 11 metros by himself, Robert Enke ou os “canucos” Geovanni e Rochemback, ambos despachados numa viagem para Lisboa com I de Ida e sem V de Volta), o clube condal tentava reconstruir uma equipa com uma série de apostas de risco (apesar de vistosos, admitamos que tanto Ricardo Quaresma como Ronaldinho não eram propriamente, dada a sua irregularidade exibicional, a sua vida conturbada de rock em roll nas boates de Lisboa e de Paris, alguma falta de cultura táctica e uma propensão para aquilo que chamo de “jogar para o número artístico”, ignorando na maior parte das vezes o sentido do jogo, o colectivo) misturadas com um misto de experiência (Davids, Gio Van Bronckhorst) e juventude. No pior momento da sua história, depois de anos a fio a investir em desilusões para colmatar a perda da saída do principal maestro da equipa, o Barça voltava a olhar para La Masia à espera de algo, de um talento redentor que pudesse dar alguma alma a um conjunto de jogadores em sub-rendimento nas épocas anteriores. Foi nesse cenário (a ferro e fogo, de guerra, de imensa crítica do Sport ao seu baluarte) que o jovem Andrés Iniesta se estreou.

E desde logo, o jovem, cativou-me. Longas foram as tardes e noites em que discutia de fio a pavio, com o meu pai, com os meus primos, a suavidade com que conduzia o esférico coladinho ao pé, como se efectivamente a ponta da bota fosse barrada a margarina para não a deixar fugir, de cabeça bem erguida, pronto a ler todo o jogo que se movia à sua frente, para mais que a acção, porque a acção no futebol só pode ser boa se por trás se tiver tomado uma boa opção e uma boa opção depende obrigatoriamente da visão e das informações e estímulos que o cérebro recebe, tomar uma boa decisão. Mais que a técnica individual, Iniesta já significava na altura a arte da tomada de decisão, a arte da inteligência aplicada ao futebol.

Todos os que se seguiram ao seu lado no clube beneficiaram deste mantra. A cavalgar a alta velocidade pelo meio-campo a cada perda adversária, para nunca deixar que o adversário se reorganizasse na íntegra, Henry cortava à esquerda (a sua movimentação característica, herdada do melhor Arsenal da História; já agora, merci Monsieur Arsène!; a tua importância no futebol, em geral na verdadeira revolução que provocaste no futebol britânico e em particular na forma em como mudaste o meu pensamento sobre o jogo, ficará para outra ocasião) e com aquela precisão na execução, Iniesta punha-o na cara do golo. Pausado, dominando por completo o tempo, factor essencial de quem ter o jogo controlado na sua asa, em ataque organizado, ali na meia esquerda, com aquela suavidade, sem nunca perder o controlo do esférico, sempre com o rec da sua Super 8 ligado para filmar, frame a frame, tudo o que se passava à sua volta, Andrés chamava os adversários um a um, desmontando qualquer esquema de organização defensiva, criando espaço para, com um golpe de mão que derribava qualquer adversário, beneficiar o jogador que se encontrava no espaço (e sem a marcação) por si criado. Nunca conheci, desde que sou gente, desde que aprecio este modalidade, para além de Zidane, de Riquelme, e talvez de Burrito Ortega, um jogador que conseguisse numa única acção irritar tantos jogadores, chamando-os, fixandos e construindo tanto espaço para jogar no futebol que dizem ser de pouco espaço. Um mito que muitos querem vender como verdade mas que nunca chegará ser verdadeiramente uma verdade. Quando fixas um, dois, três e de um momento tens toda uma equipa balançada num curtíssimo espaço de terreno no teu flanco, rodas, procurando a entrada do Dani Alves no outro flanco (tantas foram as vezes em que vimos esta cena repetida), o espaço aparece, a oportunidade do golo aparece. Quando tocas para trás ou para o lado e abres, num corte que tem o dom de arrastar quem te segue, o espaço abre-se e a bola chega a quem tu queres que chegue. Eis o terceiro homem, de Rinus Michels até aos dias de hoje. Quando não o consegues, rompes com bola, provocas o adversário e soltas, e o espaço também se abre. Eis o Provocar com Bola, o princípio que deveria ser ensinado a todos os jogadores desde tenras idades. Infelizmente não o é, mas os fracos exemplos que por esses campos vou vendo, no futebol de formação, cumprem um certo propósito: nunca cair nessa mediocridade, nesse futebol de fórmulas, de números, de espartilhos que tantos defendem e executam. O futebol é das almas livres, dos que procuram a cada acção criar algo de novo e não viver à guisa daquilo que os outros criaram. O futebol é como o Maldini escreveu várias vezes e bem, e passo a citar “um jogo de enganos”, um jogo em que uma solução fora da caixa tem o poder de assassinar mais equipas do que as mil e umas já executadas no passado. Nesse aspecto, Andrés Iniesta foi mestre.

Como o Redondo escreveu aqui no dia de ontem: yo também te quiero mucho, chaval! Por muitos e largos anos.

 

1 Comentário

  1. Mas é por o futebol ser das almas livres que o Ronaldinho Gaúcho, num PSG de coxos e sem qualquer qualidade individual, já era na minha opinião o melhor jogador do mundo. Simplesmente incrível o que fazia sozinho contra todos. Ainda me lembro dele como Ronaldo, de cabelo escovinha, e número 7 nas costas das selecções jovens brasileiras. Demonstrava talento evidente e já tinha minutos no Grémio de Porto Alegre. Mas o que fez em França, mesmo com a vida que descreveste, foi muito fora do normal. Muito mesmo. E, claro, quando o Messi se juntou eu chamava-lhes “Rei e Roque”. Entendiam-se às mil maravilhas, associavam-se constantemente em campo, procuravam um pelo outro. Te quiero, Iniesta!

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