O Dr. Octupus da Baviera

Somos viciados em sensações. Muitas vezes a vida torna-se até uma cruzada pela procura de repetir uma sensação já vivida. E este peculiar tempo de pandemia em que vivemos, prova-o. Foram inúmeras as repetições de jogos memoráveis e históricos. Os canais desportivos foram assim, neste período de confinamento, aqueles bares, pubs e discos que insistem em viver no passado. Quantas e quantas noites, quantos e quantos estabelecimentos, quantas e quantas pessoas preferem os clássicos dos 60, 70 e 80, a ouvir qualquer coisa do agora, do tempo em que vivem? Poucas, obviamente. E são poucas porque estão à procura daquela sensação, daquela emoção, de uma música, de um acorde, de um jogo, de um golo que, num período passado lhes ofereceu essa sensação. A maioria das pessoas, não duvidem, procura o futebol, ou outras coisas, à procura dessas sensações (e não há mal nenhum nisso). No entanto, em futebol, terá de ser feita uma aposta. O risco de se viver uma sensação positiva pode muito bem ser o risco de se viver uma sensação negativa. E isso é algo que não afecta só os adeptos. Afecta os jogadores e os treinadores. Quantas vezes o desejo de ganhar não é afectado pelo medo de perder?

Assim, de volta aos ‘álbuns’ de 2020, a editora Bundesliga trouxe-nos este novíssimo Dortmund-Bayern. E, para quem português se diz, o desapego esteve ao rubro. Sim, para um português o der klassiker far-nos-á parecer um indiferente e robótico alemão. Do conforto do cadeirão tuga, sem nos envolvermos emocionalmente por algo que não nos fará ir para a rua bradar a nossa superioridade, podemos facilmente distinguir a equipa mais bem preparada mentalmente e emocionalmente para ganhar o jogo que provavelmente decidiu o campeão desta época.

Numa batalha interessante pelos constrangimentos que poderia provocar nos planos do Borussia e do Bayern, começou por pesar o facto da construção do Dortmund ser incrivelmente difícil de travar. É uma coisa alemã e que pode ser recordada nas faixas antigas de Tuchel e Guardiola. Controle absoluto a partir do meio-campo defensivo dá jeito. Que o diga Nagelsmann, que o diga Favre. E daí o jogo ter-se imediatamente precipitado para a metade ofensiva do Dortmund. Mas se alguma vez o Bayern quereria entrar num jogo que já levava algumas aproximações perigosas à baliza de Neuer, essa construção teria de ser bloqueada.

Não que o Dortmund seja, depois, especialmente imaginativo na circulação ou criação, mas esse factor (uma construção dificílima de travar por não se importar de ser passiva na maior parte do tempo) esse factor, dizia, tira a maior parte da iniciativa aos adversários (que o diga José Mourinho aquando dos embates com o Leipzig), por isso a chave estará sempre em como travar e atacar esse porto-seguro.

Não se desenganem. O Bayern sabia-o. Sabia-o como ninguém e fê-lo como ninguém. E fê-lo aproveitando o mesmo factor e o antídoto. Confusos? É que foi em parte a fazer o mesmo que o Bayern, lá para os 20 minutos, começou a 1ª fase do plano, que consistia em levar a bola para o último terço. Ora, a construção do Dortmund já o dissemos, é quase imparável quando a primeira linha está alta, quase no meio-campo, forçando a organização defensiva do adversário a fechar os espaços à frente dela. Arriscar ali a pressão pode muito bem abrir a clareira que Favre deseja. Mas a coisa, amigos, muda de figura quando a 1ª linha está baixa e mais próxima da sua baliza ou área. E muda mesmo.

Aí o risco tolda a decisão. E foi a pensar nisso que Hans-Dieter Flick operou uma enorme concentração de camisolas vermelhas à saída da área rival. Qual camisa-de-forças a pressão do Bayern exerceu superioridade física mas também mental e emocional. O contendente não conseguiu mostrar o seu futebol durante largos minutos e era agora o líder que estava perto do xeque-mate. Mais ainda quando as bolas ganhas no meio-campo ofensivo davam ao Bayern a hipótese de mostrar o seu ponto de vantagem à Europa. Um jogo interior riquíssimo, a procura incessante de deixar jogadores de frente utilizando uma concentração de ácido suficiente para derreter o 541 que tinha pela frente. Um Dr. Octopus, se quisermos, que controla, manipula, domina e sufoca.

Esses foram minutos marcantes e impactantes pela superioridade e pela demonstração de força e poder, pelo show de ambição que nunca conseguiu atingir o mesmo nível do outro lado. Será então coincidência o magnífico golo de Kimmich como demonstrativo de toda essa superioridade? Ou serão o ‘azar’, e a ‘chance’, os culpados para nos períodos em que o Dortmund esteve no meio-campo ofensivo não conseguir o mesmo grau de sucesso, o mesmo grau de contundência? O que explicará a forma sôfrega como o Borussia finalizou, apesar do domínio territorial? Nas respostas estarão as conexões identidade-mente-emoção que nos trarão o futebol do futuro.

Dortmund-Bayern, 0-1 (Kimmich 43′)

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