Nas costas de Pep

Como não podia deixar de ser, foi a conversa da semana. O golo marcado pelo Chelsea (ou sofrido pelo Man City, como quiserem entender), na Final do Dragão, foi alvo de várias análises. E mesmo que não se possa dizer que a generalidade das mesmas esteja errada, quem quis saber mais sobre o assunto teve no Lateral Esquerdo um poderoso aliado. Desde a visão da jogada como um todo, começando obviamente no momento do início da pressão à saída blue que é completamente ultrapassada pelo passe de Mendy, ao desacerto entre Walker e Stones com Chilwell e Mount, passando pelo arrastar de Werner a Rúben Dias e à antecipação de Havertz a Zinchenko, a jogada foi bem entendida pela generalidade das análises mais profundas (não só aqui mas também em sites de informação desportiva, onde desde há vários anos se pegou em alguns dos conceitos que o LE nos faz chegar há mais de uma década). E se bem que não haja muito mais a dizer, convirá pegar numa frase de Sérgio Conceição sobre intensidade para explicar mais um pormenor do lance. Um pormenor que está ligado a uma escolha inicial, e que em teoria teria lógica pela forma como Tuchel desenha o seu meio-campo, mas que, no final, acabou também por ser ligado a mais um desaire europeu do Manchester City, e de Pep Guardiola.

Triângulo desenhado é puramente teórico e serve de guia para interceptar o passe de Mount ou atenuar as ameaças que o mesmo traria



Falamos obviamente da inclusão de Gundogan como holding midfielder, aquilo a que vulgarmente chamamos de trinco e que mais recentemente nos habituámos a designar como seis. E não sendo Gundogan um elemento com as características mais recorrentes noutros polvos donos desse lugar, também a sua capacidade para antever e resolver o lance deixou a desejar. E dizia Sérgio Conceição recentemente (não, não me esqueci) que a intensidade era elemento chave para cobrir e fechar espaços, mais rapidamente, e mais eficientemente. E olhando para Gundogan nesse lance, outra frase de outro carismático técnico português vem à cabeça: o jogo são 90 minutos, passas dois ou três com bola e o resto sem ela. Fica o pormenor porque demasiadas vezes o risco de adiantar a equipa para pressionar, correndo o risco de destapar a equipa, é atenuado por jogadores que juntam à excelente leitura de ocupação nos espaços, uma disponibilidade física que lhes permite realmente ocupar esses espaços e não somente filmá-los ou tê-los na cabeça como posição ideal.

Um primeiro momento onde Gundogan olha para a posição de Zinchenko e um segundo momento onde fica próximo de interceptar o passe. Fica claro, revendo o vídeo, que Gundogan poderia ter condicionado Mount de forma mais eficaz. Aliás, nem chegou a fazê-lo.



Mas tudo isto, apesar da adenda que lhe junto, não mereceria um post quase uma semana após a Final e depois de uma série de boas análises. O que faz nascer estas linhas é que todos os pormenores que falharam ao City no golo marcado por Kai Havertz estão presentes em todas as eliminações europeias dos Cityzens desde que Pep chegou ao Etihad. E quer isto dizer que Pep Guardiola é um mau treinador? Obviamente que não. Mas é – ainda que Guardiola o saiba melhor que todos nós – um padrão difícil de ignorar. Assim, juntando ao tento de Havertz, temos o de Cornet pelo Lyon em Alvalade (2020), o de Son pelos Spurs em White Hart Lane (2019), os dois de Salah (Anfield/Etihad, 2018), ou o de Mbappé no Etihad em 2017. Assim, de há cinco anos para cá, encontramos este ponto em comum em todas as eliminações: quando a pressão não funciona (e nunca vai funcionar com 100% de eficácia em nenhuma equipa) o ajuste da linha média e principalmente da linha defensiva não se compadecem com a intensidade para ocupar os espaços que realmente devem ser ocupados, como não obedecem aos triggers, aos estímulos, para encurtar de melhor forma a profundidade.

1) Quando Walker fica fora do lance, Stones está estático e deixa Mount virar, mas ainda assim Zinchenko está à frente de Havertz e Rúben tem hipótese de fechar melhor o ‘meio’. 2) Quando a bola fica disponível para entrega, já Kai e Werner se movem. Rùben acompanha mas perde o centro, Zinchenko fica para trás. Gundogan pensou sempre que não era nada com ele. O estímulo que tem de nascer destas duas imagens (e nunca apareceu no lance) é aquele que se fala neste texto e que percorreu as várias eliminatórias de Pep no City



E por muito que se fale em bola coberta/bola descoberta, a missão de Pep é bem maior que compreender o conceito e tirar print screens de quando se falhou. A real questão para Guardiola é uma questão teórica para os sofistas (não os da Grécia Antiga mas os que analisam no sofá), isto porque só o conceito não chega. A questão é como podemos manter uma identidade que liberte tantos jogadores ofensivamente, sem que isso tenha consequências defensivas? E aqui chegamos a outros dois padrões que estão também presentes na maioria destas eliminações (e para os quais deixo vídeos para se confirmarem). São eles a falta de eficácia em reais oportunidades de golo e erros não forçados que acabam no cordame do City. Obviamente que deixar de cometer erros não forçados melhora desde logo a prestação defensiva (e nisso o Man City deste ano melhorou imenso na Champions League), mas obviamente que marcar o máximo número de oportunidades terá também ligação com a parte defensiva do jogo. Isto porque estender a equipa para tentar marcar e não consegui-lo, é bem diferente de estender a equipa, correr riscos, abrindo espaços e não sofrer com isso, marcando. E ficou à vista com o Chelsea que esse risco defensivo que se correu, ficou maior à medida que a boa entrada se ficou por isso mesmo: uma boa entrada… sem golos.

Algures em 2018, também depois de uma saída de bola, a equipa demora tempo a perceber a melhor forma de se proteger. Com as devidas diferenças, Oxlade-Chamberlain como Mount, Salah como Haverz. E não foi preciso Werner.
(Para melhor compreensão dos lances e do texto, ver vídeos abaixo)


De maneira que para se assumir essa vertigem e esse desequilíbrio posicional que se quer traduzido em golos, o detalhe nos estímulos que permitem ocupar os espaços nucleares defensivos terá de ser maior. E para isso chega somente o já tradicional bola coberta/bola descoberta? Certamente que não, como não chegará somente a intensidade física para se solucionar erros nascidos mais à frente no campo. E como nesta época Pep resolveu o problema dos erros não forçados, e de alguma maneira resolveu também alguns dos problemas da finalização (o City chega à Final sem ter perdido nenhum jogo, sendo considerado unanimemente como a melhor equipa da prova), Guardiola tem agora de arranjar maneira de inovar na percepção que os seus jogadores têm (especialmente a última linha) quando há risco de a bola ser endossada nas costas. Problema resolvido parcialmente com o PSG (com os laterais a não subirem e a manterem a linha de quatro quase sempre formada) mas que voltou a assombrar o catalão quando quis ir mais à frente sem pensar atrás. E por mais que nos queiram vender o contrário, uma parte é indissociável da outra.

Bem sei que, ainda mais nos tempos que correm, quem tiver a paciência de ler isto poderá ficar condicionado pela visão a preto e branco e entender isto como uma crítica feroz a um dos melhores treinadores da história contemporânea do futebol. E servem estas últimas linhas para negar isso mesmo. Isto porque no futebol (e em quase todos os fenómenos da sociedade em que vivemos) há a tendência para se tirar uma foto de alguém e condicioná-lo, crucificá-lo a isso. Há o desejo milenar de criar uma ideia, um conceito e elevá-lo à imortalidade. E Pep (como toda a gente que cria e tem relevância para ser julgada) ficou crucificado à ideia que criou há mais de uma década e que revolucionou este desporto. Como se o futebol não tivesse acompanhado a evolução e não se protegesse agora disso, ou como se Iniestas, Xavis, Messis &cia andassem por aí ao pontapé, a razão apontada para o seu insucesso é a da mudança da identidade. Como se fosse possível o sucesso interminável e transportar tudo o que aconteceu na Catalunha para onde Pep aterrasse a seguir. Esse, como já aqui foi dito, foi um período onde essa ideologia passou por entre organizações defensivas que já não existem nem voltarão a existir. Onde os 74% de posse de bola almejados, os posicionamentos ofensivos e as rotas escolhidas envolviam muitíssimo menos risco que agora, e onde os intépretes tinham um grau de eficácia a fazê-lo que, pura e simplesmente, não pode ser comparado com os de agora. Para guardar uma foto de 2010, servem os álbuns. Entretanto o Mundo avança, independentemente de quem acha bonito ou feio. É o que é, jogue-se e aprenda-se com isso, ao invés de se viver num passado que já não existe. E dê-se a Pep a misericórdia de se poder reinventar, de poder transcender a identidade sem que de uma heresia tenha que se tratar.

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