Sufocar pela identidade que é sempre a mesma – 30 minutos à Porto

“A partir do momento em que analisámos o adversário, que é de muita qualidade, percebemos que era importante imergir o nosso melhor traje competitivo, catalisar nos jogadores uma entrada a alta rotação, cheios de intencionalidade tática, com e sem bola, sem nunca especular com o jogo. Essa foi a mensagem passada. Os jogadores foram muito fortes, castrámos muito os alimentadores ofensivos do adversário e procurámos ser verticais com bola, atalhar os caminhos para a baliza adversária. Os jogadores interpretaram o guião ao milímetro e, por isso, estão de parabéns.”

Vítor Bruno, adjunto do FC Porto.

O FC Porto eliminou o SL Benfica da Taça de Portugal muito graças a uma entrada fortíssima na partida, produzindo uma meia-hora extremamente competente em todos os momentos do jogo e mostrando mais uma vez que é talvez a equipa em Portugal que melhor molda a identidade do seu jogo (nunca a perdendo) às características dos diferentes adversários que vai encontrando. Analisando então uma equipa que se alinha normalmente num 1-3-4-3 com características tendenciais para a vertigem (seja pela procura de Rafa em espaços interiores para acelerar sobre a linha defensiva para fixar e soltar ou pelos movimentos agressivos na profundidade do ponta Darwin, com estas ligações a serem feitas essencialmente pela dupla João Mário/Weigl, que os centrais procuram invariavelmente para serem estes a assumir as ligações) e com algumas fragilidades inerentes no controlo da profundidade pelas características dos três centrais (Vertonghen, André Almeida e Otamendi já não possuem a velocidade de outrora), era necessário suster a primeira questão e capitalizar a segunda mas impondo sempre aquilo que é o jogar “à Porto”. E sendo assim, tivemos:

  • Exposição da linha defensiva ao desconforto pela solicitação da profundidade, sendo que por forma a enquadrar os médios o mais rapidamente possíveis para estas ligações ou efetuava-se jogo direto com os pontas a tocarem de frente para 2ª bola nos médios ou, por debilidades da pressão do Benfica como sucede no 3º golo, a bola entra diretamente por dentro num dos médios que, ao enquadrar, ativa os contramovimentos da frente com o ponta a vir em apoio e Luís Diaz a entrar em rotura entre centrais.
  • Pressão bem alta na frente por forma a esconder os médios do Benfica do jogo, com o extremo a saltar no central exterior, o lateral a saltar no ala, os pontas em registo de 1+1 com um a fechar o central do meio para impedir variação e o outro em cobertura no corredor central a vigiar a zona de Weigl. Os dois médios dividem espaço na cobertura a esta pressão para os movimentos de apoio do avançado interior desse lado (Rafa, ou 3º médio, no caso de Taarabt) e de João Mário.
  • Destaque ainda para os comportamentos da linha defensiva dos dragões, com dinâmicas de topo (orientação corporal, padrão de deslocamento, interdistâncias) no que toca a controlo da largura e profundidade em resposta à bola, à pressão da própria equipa e às indicações motoras do portador que acabaram também por retirar alguma área de ação a Darwin que teve alguns lances perigosos anulados por fora-de-jogo.

Mas aproveitando a deixa, qual é a identidade deste Porto? Sérgio Conceição já comanda a equipa há tempo suficiente para deixar a marca das suas ideias no jogar dos dragões e ouvindo o próprio Vítor Bruno, seu adjunto, num episódio de podcast lançado há alguns meses, podemos tirar algumas pistas sobre como é pensado, refletido e operacionalizado este modelo:

  • Um modelo que tem uma face – “o maior elogio que podemos fazer à nossa equipa é olhar para ela e associá-la a um rosto que é o seu treinador, Sérgio Conceição. E olhar para ele e perceber um pouco as suas origens, as suas raízes, o seu percurso de vida quase sempre assente em designíos como a verdade, a honestidade, a capacidade de superação e de luta, fez com que ele pudesse também espelhar na sua equipa aquilo que ele é e que ele foi. Eu acho que isto tudo é muito similar com aquilo que se encontra no campeonato alemão: o campeonato alemão é para nós um campeonato referência, que seguimos com atenção e que nos seduz porque as raízes mais fortes estão associadas a conceitos de equipa. Depois também porque encontrámos nas equipas alemãs que temos defrontado, equipas que nos causam uma imensidão de problemas e nós revemo-nos muito naquilo que eles fazem principalmente no momento sem bola – são equipas fortíssimas com uma capacidade de pressão brutal, que limitam ao máximo os seus adversários.”
  • A dimensão estratégica num jogar identitário – “um treinador, ou uma equipa técnica, tem de ter na cabeça uma ideia bem definida para aquilo que querem, para aquilo que é o seu jogar e o treino em si é um aliado muito forte do treinador. Para nós o microciclo surge como uma unidade estrutural do nosso planeamento até porque nós projetamos estados de forma para o imediato, com exigência total no dia-a-dia para termos máximo rendimento em competição. Muitas vezes até concluímos apenas a unidade de treino no dia em que a vamos levar a terreno sendo que geralmente traçamos um esboço daquilo que é a semana, os objetivos e prioridades e daí lançamo-nos ao trabalho. E cada vez mais o treinador tem de tirar mais aproveitamento de todos os minutos do treino para poder operacionalizar uma ideia e validar comportamentos. A dimensão estratégica é algo que para nós é indissociável do nosso jogar e acaba por se cruzar com ele em permanência durante a semana; agora é preciso perceber que o nosso jogar nunca pode ficar refém de questões de ordem estratégica ou por esse lado mais detalhado, quase microscópico, da análise que fazemos dos nossos adversários. Uma coisa é fazer a leitura de onde podemos ferir o nosso adversário e quais as ameaças que ele nos pode oferecer, outra é a semana de trabalho ser toda orientada para o nosso adversário. Percebemos ainda que treinadores de adversários teoricamente mais acessíveis acabam por alterar estruturalmente e funcionalmente as suas equipas o que pode comprometer e acarretar alguns problemas extra se a mensagem e os conteúdos forem orientados apenas para esse tipo de dimensão e análise de adversário e esse é um constrangimento grande que nós sentimos na preparação dos jogos.”
  • A tomada de decisão precisa de liberdade – “parece-me que estamos cada vez mais a castrar aquilo que é o talento e criatividade dos jogadores. Nós não nos devemos esquecer que o jogo de futebol deve ser visto como um meio onde a criatividade dos jogadores se possa expressar ao máximo e apesar de analisarmos adversários, filtrarmos informação, temos mesmo de ter algum cuidado sobre como essa informação os pode condicionar em treino. Devemos levar a treino alguns contextos que os façam sentir depois confortáveis no jogo e poderem resolver tudo aquilo que vão encontrar no momento competitivo mas não devemos castrar em demasia ao colocar demasiados constrangimentos ao treino. O tempo foi-me dizendo que quanto mais constrangimentos nós colocarmos, quanto mais feedbacks nós dermos e elaborando exercícios demasiado complexos acho que começamos a fugir aquilo que é o principal objetivo. Quanto mais canalizarmos o nosso foco para uma ou duas determinantes importantes do exercício A, B ou C, o jogador sente-se mais cómodo, mais confortável e com mais liberdade para poder decidir e são essas tomadas decisão, muitas vezes intuitivas, que se nós as provocarmos em treino no futuro vamos ganhar com isso.”
  • Como modelar sem desvirtuar – “na dimensão estratégica que nós levamos a treino algumas questões que nós conseguimos resolver sem que o jogador se aperceba que estamos a olhar em demasia para o nosso adversário. Usando o exemplo de um [extremo]: nós pedimos muitas vezes ao nosso [extremo] que no momento defensivo tenha 3/4 preocupações e que depois as consiga hierarquizar em função da necessidade do momento – pedimos muitas vezes que ele possa ser o primeiro a saltar na pressão aos centrais, pedimos muitas vezes que ele consiga fechar dentro e encontrar um médio defensivo para que o adversário não consiga ligar e acelerar para corredor contrário com facilidade, pedimos também muitas vezes que ele possa afundar numa linha defensiva montada inicialmente a 4 e que ele possa ser o 5º elemento – e conseguimos ir jogando com isso em função do adversário que vamos apanhando. Podemos também falar de adversários que pensamos que vamos encontrar num bloco muito metido atrás em que a primeira linha de pressão é montada apenas com um elemento na frente e aí se calhar já não faz tanto sentido montar uma primeira fase de construção a 3 e se calhar ter mais gente numa segunda ou terceira linha para que possamos ter gente que crie dificuldades na ligação setorial do adversário no controlo destes espaços.”
  • O treino, sempre o treino – “eu acho que o treino tem carecido daquilo que é o seu total significado, porque em Portugal acho que se treina pouco. Se estabelecermos aqui um paralelismo com outros desportos em que o treino é visto como uma arma brutal para poder aproximar os jogadores de patamares muito elevados de rendimento, eu acho que nós estamos a dever um bocadinho a nós treinadores aquilo que é hoje em dia o treino. Eu acho que nós direcionamos tudo demasiadamente para questões coletivas ou setoriais, não é que não se deva fazer mas é muito a realidade do nosso treino e acho que este lado individual tem pouco peso. Falando por exemplo de um número 6, um pivot defensivo: se pararmos para pensar na infinitude de ações e de missões que ele tem – a quantidade de pensamentos que ele tem de ter e a uma velocidade brutal por estar numa zona densamente povoada, o posicionamento com bola e sem bola, na articulação que ele tem de ter com os diferentes setores da equipa por ser um elemento central, numa zona mais alta ou mais baixa no campo – , se depois nos consciencializarmos disso mesmo e percebermos que o treino muitas vezes está desprovido deste lado mais individual temos muito a ganhar tornando-o cada vez mais especifico e não tão lato e abrangente tornando-o redutor.”

Sobre Juan Román Riquelme 97 artigos
Analista de performance em contexto de formação e de seniores. Fanático pela sinergia: análise - treino - jogo. Contacto: riquelme.lateralesquerdo@gmail.com

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