Sem misericórdia

É algo comum ouvirmos dizer que as águias quando sentem a tempestade voam acima das nuvens para encontrar a paz. Um dizer que dá bonitas analogias para tempos conturbados, mas que na realidade prática não passa de um mito. Assim o é quando muitas vezes encontramos estas bonitas frases feitas nas redes sociais, como assim o é quando os treinadores preparam os seus jogos baseados em algo teórico, na espera que a realidade o confirme. Ora, como as águias baseiam os seus tempos de voo pelas horas em que necessitam caçar, jamais arriscariam a integridade física saindo numa tempestade. E mesmo que pudessem voar acima das nuvens, qual o bem para o seu campo de visão (necessário para ver as presas) que daí adviria? E ainda que na antevisão a este clássico do Dragão, jogado para os oitavos da Taça, cheirasse a tempestade, Jorge Jesus tentou que a equipa voasse acima das nuvens. Com a inclusão de mais um médio (Taraabt) ao sistema habitual, tentou o experiente timoneiro que a equipa tivesse mais posses longas para acalmar o fogo do Dragão – sem perder a procura da profundidade e as saídas em transição que oferecem Darwin e Rafa. Um plano já antes visto nestas visitas ao reduto dos portistas, onde acalmar o ímpeto do FC Porto pode ser fulcral para um resultado positivo. Onde mais algum tempo com bola pode ser fundamental para encontrar um desequilíbrio numa equipa que vem sempre armadilhada para matar o maior rival e que para o fazer tem de se esticar mais que o normal.

É notório o desconforto do Benfica sempre que altamente pressionado no seu meio-campo defensivo. E se essas saídas são fulcrais para o jogo que JJ idealiza, aperfeiçoá-las para resistirem a estes ataques torna-se imperativo. Como Rúben, também Sérgio se apercebeu que para a balança pender para o seu lado havia que ser sempre mais agressivo, mais forte (e também mais eficaz) que o adversário. E quando um dos pontos menos fortes do adversário casa directamente com um dos pontos fortes do FC Porto, inclinar o jogo para que haja imensas situações dessas, é imperativo.



Contudo, o plano do FC Porto tornou essa teoria em pura ilusão. Como? Com os olhos postos no último terço, a identificação das muitas tremedeiras do Benfica nas suas saídas levou a um forcing total do FC Porto sobre a área do Benfica. E com o jogo a desenrolar-se por lá nos primeiros minutos, foi gritante o desconforto do Benfica quando (bem) pressionado. Já o tinha sido no Benfica-Sporting – com várias perdas ainda antes do golo de Sarabia – e assim o foi neste primeiro round de dois frente ao Porto no espaço de uma semana. Factos que são bem perceptíveis se nos lembrarmos das declarações de dois protagonistas no final da partida. E se Grimaldo lembrou os avisos de Jorge Jesus para as primeiras e segundas bolas, Vítor Bruno sublinhou a necessidade de contra uma equipa forte, vestir o melhor traje competitivo. Uma leitura irrepreensível dos dois e que nos mostra o caminho que levou a um desequilíbrio gritante no jogo. Porém, para que o plano – hoje abençoado por toda a imprensa pelo carimbo de goleada – fosse realmente validado, o FC Porto tinha também de corrigir o enorme gap que separa a sua criação de oportunidades e a sua marcação de golos.

Bem sabemos que em futebol a visão se torna muito a preto ou branco conforme o lado para o qual a vitória pende. Mas imaginemos que o cenário nos primeiros minutos do jogo não castigava o Benfica em forma de golos. E para ajudar ainda mais a fugirmos da dualidade (vitória/derrota) que tolda as análises, imaginemos que no momento do passe de Taraabt, Darwin estava 4 centímetros em jogo. Com certeza que as odes ao jogo portista seriam outras e com certeza que ouviríamos falar de novo de uma equipa que só joga directo, que só bate e que joga feio. Mas com Evanilson e Vitinha a corrigirem a mais evidente falha do FC Porto no seu jogo (a finalização) este clássico deu um cheiro daquilo que pode ser esta equipa quando alia a eficácia à facilidade com que cria oportunidades. E essas podem vir até de um lançamento lateral (imagine-se!), pela forma muito mais ávida com que Taremi e Evanilson reagiram ao desvio de Fábio Cardoso. É ver e rever, num exercício que nos guiará ao porquê das bolas caírem muito mais para os portistas do que para os benfiquistas neste jogo (e noutros tantos!). Ou podem também essas [oportunidades] surgir de um pontapé-de-canto onde o desconforto leva a hesitações como a de Helton Leite – que pela fraca execução do soco que deu na bola, deixou a baliza deserta tornando a sua saída num erro crasso. E é tanta a versatilidade do FC Porto na criação dessas mesmas oportunidades (algo que existe, consiga marcar depois ou não) que até na procura da profundidade encontrou forma de marcar o terceiro. Um lance não muito distante daquele em que Darwin introduziu a bola na baliza e que é excelente para se compararem as linhas defensivas das duas equipas.

Não foi um desvio de bola que sobrou para Taremi e uma bola que Evanilson aproveitou. Antes disso há um trabalho importante dos dois avançados na reação ao desvio de Fábio Cardoso. E se há algo que pode ser utilizado como metáfora para este jogo, talvez a forma ávida como os dois pontas do FC Porto se superiorizaram à marcação dos adversários seja uma das melhores analogias para explicar a superioridade de uma equipa em detrimento da outra.

Um exercício que como as análises ao jogo vai ser obviamente colorido pelo resultado. E se no lance de Darwin o movimento da linha defensiva portista vai ser aplaudido, no lance de Díaz com Almeida, o movimento de André vai ser criticado. No entanto a verdade fatal é que haverá coisas a corrigir dos dois lados. E se Mbemba salva na hora do gongo quando aproveita o passe atrasado para subir, Fábio Cardoso foi dando passos atrás – dando a entender que não saiu assim tudo tão coordenado como o resultado indicou. Já a André Almeida fica difícil não ir na profundidade quando a diagonal de Díaz já está a ser traçada (com o andar para a zona central do colombiano) ainda antes de a bola chegar a Uribe. Poderia ser diferente? Poderia. A Vertonghen, sem movimentos no seu espaço, foi fácil de dar dois passos em frente, enquanto Uribe encontra o melhor momento de passar. Mas quando isso acontece já Luis Díaz deu vários sinais a Almeida de que vai partir. Poderia ter escolhido um dos momentos para o tentar colocar offside? Provavelmente, sim. Mas a opção acaba por não ser tão descabida assim. Porque deu golo merecerá o destaque próprio de quem usa o que mais lhe convém para validar a sua ideia, mas a realidade (aquela em que os profissionais de futebol têm de viver) mostra que este tipo de decisão, mesmo com uma ideia bem vincada, nem sempre é possível de tomar nestes instantes. Ao fim ao cabo, André Almeida escolheu o que muita gente anda a pregar há anos: com bola descoberta, retira espaço. O que nos costumamos esquecer é que há muito para além disso. E que ao jogador pesa deixar um adversário ir correr sozinho em direção à baliza, se falha o timing certo. É um erro? Pode ver-se assim. Mas como ver a linha defensiva do FC Porto no lance de Darwin?

Ficou bem patente a forma (ou formas) como o FC Porto tentou ligar (e manter) o seu jogo ao último terço (zona onde mais as fragilidades do Benfica se evidenciaram). Fosse com recurso ao jogo directo, no ganho de primeiras e segundas bolas, fosse por via da pressão à saída, um dragão de alta rotação levou os decisivos minutos iniciais para onde mais lhe convinha. E tirou, por via dos golos, usufruto disso mesmo.



Sim, o futebol é um lugar sem misericórdia. Onde tudo é aproveitado para o bota abaixo habitual. Há a tendência geral de tirar uma foto ao jogo e de se achar que o jogo não foi mais nada do que essa foto. Mas aproveitando esta benção que é a de termos dois clássicos no espaço de uma semana (ainda para mais inseridos na quadra festiva) convém não esquecer que o futebol é o momento. Os golos e resultados validam estratégias, mas que ninguém pense que Sérgio Conceição vai chegar ao Olival sem ter algo em que pensar e que vai andar a semana toda a festejar uma vitória que não lhe deu um troféu. E não se pense que Jorge Jesus não sabe as voltas que o jogo já lhe deu, as mesmas em que vai de mestre a ultrapassado. Uma corrida em que ele já se viu muitas vezes. E tal como é certo que o sol nasça amanhã (ainda que às vezes não se veja) é certo que o futebol não pára. E isso é a coisa mais misericordiosa que tem. Há a oportunidade de fazer diferente, ou daquele momento decisivo pender para outra equipa. Um desporto que não se cansa de nos ensinar lições. E uma delas é mesmo a de repararmos na forma como tecemos loas ou acabamos carreiras, num desporto onde há erros para todos os lados e para todos os gostos. Avisado estará o FC Porto para isso e avisado estará o Benfica para um clássico muito mais difícil de antever do que este último. Parte o FC Porto na frente porque está preparado para aproveitar as falhas do Benfica e para resistir aos seus pontos fortes? Parte de um ponto de vista teórico. E é por ser só isso que não estamos todos ricos com dinheiro das casas de apostas.


Como foi notório, a estratégia do Benfica não estava preparada para resistir a tamanho assédio. Ainda assim, quando a bola não foi ganha, ou não sobrou, para o FC Porto deu para se perceber o que Jorge Jesus pretendia que fosse o jogo. Um Benfica de linha de três a sair (mais difícil de pressionar quando saem perto do meio-campo e não no último terço) e momentos de posse alternados com a procura da profundidade. Algo que depois foi ainda mais evidente com o acumular da desvantagem e com a vantagem numérica. O FC Porto, com excepção dos ataques à profundidade de Darwin, respondeu quase sempre a um nível alto, protegendo-se muito bem das outras armas e forçando o Benfica a um jogo-exterior que é muitas vezes estéril para os encarnados.

Também depois de um período conturbado envolvendo o FC Porto, o Benfica da passada época foi ao Dragão e arranjou maneira de surpreender os dragões. Várias saídas perigosas e um elemento a aparecer em espaços que confundiram a organização defensiva permitiram aos encarnados um jogo mais à medida das suas exigências. Serve a lembrança para que não sejamos rápidos a adivinhar o totobola, nem a arranjar Deuses ou a matar treinadores. FC Porto bastante melhor neste jogo, algo que tornará o segundo round muito mais imprevisível e deveras interessante.

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