Ganhar sem perder

A dualidade é algo bem presente na maioria das apreciações e opiniões sobre futebol. Contudo, apesar de bem presente, fugir-lhe é sempre algo que as mesmas não contemplam. A tendência, já sabemos, é a de ver tudo a preto a branco e escolher uma dessas polaridades para analisar. A bitola usada, já sabemos também, é a vitória ou derrota temperada com a expectativa anterior ao jogo. Assim, as opiniões já estão formadas antes. Se imaginarmos que um Benfica, um Porto ou um Sporting terá de perder por poucos frente a um Liverpool ou a um City, e se o resultado for uma goleada das antigas, a análise estará já toldada por essa pensamento, essa expectativa anterior. Da mesma maneira que se os três grandes enfrentarem o Ferencvaros, os pensamentos posteriores estarão sempre condicionados pela expectativa de qualquer deles ser teoricamente superior à equipa húngara. E é esta atração pela certeza absoluta que fabrica toda a massa humana ligada ao futebol que compete. Desde adeptos, dirigentes, jogadores e treinadores, a enorme maioria é atraída a este desporto por um cenário mental de vitória constante, pelo glamouroso mundo do sucesso onde a constância e a certeza imperam. Depois, passando também pelos jornalistas que cobrem o desporto, a escolha de uma dessas polaridades para analisar é também uma constante. Parte-se do princípio que a execução perfeita das expectativas criadas é a única medida de sucesso, ou seja que quem perde é mau, e que quem ganha é bom. Algo que se soma agora às ideologias que pregam que se jogares de uma certa maneira és bom, e se jogares de outra és mau. A tudo isto não interessam a contingência e a possível ilusão nas expectativas criadas. Assim, um treinador que termine em 10.º na I Liga só será elogiado se a expectativa anterior fosse a manutenção. Caso fosse o top4 ou lugares europeus será, obviamente, ostracizado. É padrão, é vício, é ignorância? É, sobretudo, falta de visão, falta de noção do contexto e é, também, a ilusão da certeza absoluta.



Lembremos o momento de Rúben Amorim no Sporting. O Rei Midas leonino dá, também ele, sinais de não conseguir escapar à ditadura dos resultados. Numa carreira marcada pelo enorme sucesso imediato e, sobretudo, por uma época em que tudo o que poderia ter corrido bem, correu, Rúben dá agora lições de como gerir os momentos difíceis – aos quais ninguém com uma carreira de anos conseguirá escapar. E isto é realismo, pois será a reação aos momentos negativos e a reação à consciência geral (ganhas és bom, perdes és mau) que permitirá constância em futebol. E tudo isto é já deveras conhecido, e há até quem consiga escapar desses extremos, mas a armadilha continua presente. Sobretudo para quem quer jogar o jogo e nele sobreviver. Uma armadilha que é explicada na perfeição pelas vitórias leoninas sobre o Frankfurt e o Tottenham. Vitórias amplamente elogiadas e usadas para catapultar o Sporting para um nível onde não estava e para gerar uma expectativa que agora, com um cenário ultranormal de 6 pontos conquistados em 4 jogos num grupo de Champions (os mesmos que um FC Porto agora amplamente elogiado), invocam o apocalipse em Alvalade. Sim, o Sporting bateu com justiça os alemães e os ingleses. Jogos divididos, de controle também ele dividido e de equilíbrio nas oportunidades geradas. E quando assim é não seria, porventura, descabido que quer Eintracht, quer Tottenham, pudessem ter batido um Sporting que, lembramos, se encontra em processo de renovação e onde as reações dos jogadores serão sempre mais baixas, mais incertas, do que quando estavam incluídos num colectivo sólido que provava, jogo a jogo, ter ferramentas para cumprir e superar as expectativas. O mesmo colectivo que as aumentou de forma impossível para um que se vê agora privado dos seus principais intérpretes.



É então erro de Rúben Amorim que tenha passado despercebido à maioria que o Sporting poderia ter perfeitamente perdido esses dois jogos? Que o fumo dos foguetes dessas vitórias, como sempre, tenha enevoado quem tem a responsabilidade de as analisar para a enorme maioria dos seguidores? Bem sei que é difícil a quem comenta, e a quem apoia (e até a quem dirige ou joga) focar-se no negativo depois de uma vitória. Não é um equilíbrio fácil. Contudo, e para quem está a pensar ser treinador ou jogador para mais do que passear o fato-de-treino no café ou redes sociais, é bom que se avise que esse trabalho sujo tem de ser feito. O sonho da vitória atrai e pode toldar. Mas é nessas que mais se esquecem os pormenores que constroem os alicerces da casa. E enquanto anda o Mundo a bradar loas ou a gritar impropérios, terá a equipa técnica o difícil trabalho de chamar a atenção para o facto de o nível apresentado poder não corresponder ao que se exige – mesmo em caso de retumbante vitória. Isto sem beliscar a confiança dos jogadores. É por isso normal que os treinadores, depois de retumbante vitória, entrem um pouco no filme de deixar andar esse comboio. É que nesta viagem atribulada, que nos atira de um lado ao outro com facilidade, sabe bem um pouco de paz, sabe bem andar na crista da onda de quando em vez. Mais ainda quando a equipa precisa de confiança e em que o foco constante em aspectos negativos pode baixar a autoestima. Contudo essa é a armadilha. E tal como fizeram a Rúben Amorim nas passadas semanas, para lhe darem a estocada nesta, o mesmo pode acontecer a Sérgio Conceição. E, acreditem, se o resultado frente ao Benfica não for aquele que a expectativa desse tribunal gerou… o preço a pagar pelos elogios desta vitória frente ao Bayer Leverkusen na Alemanha será imensamente caro para a temporária e ilusória paz que gerou.

A ideia do FC Porto passava pela alta eficácia de passe logo após o momento da recuperação de bola. Algo que, como poderemos ver no vídeo abaixo, nem sempre aconteceu (fruto da enorme dificuldade que a pressão do Bayer impôs) mas que encontra exemplo perfeito numa das únicas vezes que o FC Porto saiu de forma perfeita na 1.ª parte. A questão será agora a de olhar para este aspecto a melhorar sem o colorir de negatividade e sem achar que não deve ser corrigido porque o resultado foi perfeito. Olhando a médio e longo prazo estes são aspectos do jogo a corrigir. Ser trabalhado após uma retumbante vitória deve permitir naturalidade com os erros e evitar a carga negativa ao invés de se varrer para debaixo do tapete como os media e os adeptos sempre fazem depois de vitórias importantes. A um treinador ser-lhe-á impossível não abordar estes aspectos, especialmente com o aproximar de jogos importantes e até decisivos na Liga e na Champions.



Por tudo isso quem quer ser treinador ao mais alto nível deve deixar a ilusão de que se pode gerar consenso total, de que se pode viver constantemente na crista dessa onda imaginária. Usar o futebol para preencher um vazio de autoestima é má ideia, portanto. Se a gasolina é essa podem esquecer e procurar outra coisa porque a vida de treinador é, cada vez mais, esquecer essas polaridades e encontrar a middle way onde isso tudo desaparece. É fácil? Não. Mas é essa a missão. A difícil missão de depois de uma vitória por três a zero num jogo fora na Alemanha ter de explicar aos jogadores que a exibição, em muitos aspectos, não foi bem conseguida. Que a estratégia andou num purgatório boa parte do tempo, e que o espaço dado ao Bayer por fora do bloco condicionou o ponto mais forte do jogo portista (a pressão constante). Que o bloco médio mais uma vez não funcionou como se pretendia (algo que já vem dos jogos contra a Lazio e Lyon mas que também se viu na primeira metade no Dragão frente ao Bayer) e que o momento do ganho de bola gerou mais bolas para o Bayer do que para um FC Porto com imensas dificuldades em sair. Tudo isto somado a uma dupla de centrais sem rotinas e com claras dificuldades em iniciar jogadas de forma apoiada, que recorria quase sempre ao cenário sem risco (atrasar para Diogo ou bater na frente de forma desconexada) mas limitado para levar o jogo para outro nível de conforto.

A largura do Bayer (que por vezes foi dupla, como na imagem acima) criou várias dúvidas ao FC Porto no momento de pressão, o que inevitavelmente levou a equipa a baixar mais no terreno. A estratégia (notou-se) contemplava essa hipótese, oferecendo o espaço exterior e protegendo mais o corredor central. Ainda assim, o FC Porto não evitou algum desgaste e descontrole face à extrema largura do sistema dos alemães.



Ora, isto parece um autêntico e desnecessário roast a uma equipa que acabou por vencer com justiça e mérito, com uma estratégia onde muito do que foi treinado resultou em pleno. Mas os mesmos que se insurgirão contra esta constatação da realidade, e que gostam de viver num céu imaginário onde uma equipa que concede tantas oportunidades pode ganhar por 3-0 todos os jogos, serão os mesmos que vão cair em cima de Sérgio e da equipa se o resultado contra o Benfica não for o melhor (para eles). Foram os mesmos (sim, independentemente da cor, são os mesmos) que caíram em cima de Rúben e do Sporting quando os sinais estavam todos lá: dificuldades numa saída-de-bola que não é protegida pela tentativa constante mesmo quando as dificuldades estão visíveis, um miolo que não cria nem destrói como no passado recente e um trio ofensivo sem profundidade que vive da constante bola no pé, que pisa os mesmos espaços e onde a taxa de sucesso no 1v1 terá de ser extremamente alta para se criar). Cenários de Porto e Sporting bastante parecidos mas estupidificados por uma análise a preto e branco que tanto cria heróis artificiais como os destrói à primeira chance. É comum ouvir-se dizer que as reações à adversidade são o que define a estabilidade mental e emocional dos grandes craques e dos grandes treinadores. E isso é um facto. Tal como o é a reação ao sucesso, ao êxito e, sobretudo, à fortuna. É que no Mundo da Dualidade tudo é ilusão. E não temos de lutar só contra o mau. Também o bom dá uma sensação ilusória de conforto. Também esse bom é mentira porque não dura sem trabalho. E são os melhores treinadores, os que escapam à montanha-russa dos sucessos retumbantes aos declínios vertiginosos, aqueles que são menos afectados por este fruto do bem e do mal, os que vagueiam em paz por essas constantes tentativas de nos rotularem como superiores ou inferiores. Assim, se sonhamos ser superiores é quase certo que tenhamos que aprender a lidar com a sensação de ser inferiores. Mas se fugirmos a isso, procurando o mais na vitória e na derrota, essas polaridades desaparecem. E há sempre mais para experienciar se o foco for o processo de ser mais e não estiver num resultado que na próxima semana já não contará. Vejam os jogos do Sporting contra o Eintracht e contra o Tottenham. Vejam os do FC Porto contra o Bayer. Estão lá os sinais positivos que deram a vitória e está lá muito mais para melhorar. E esse é o gosto de ser treinador. E quem se encanta pela sereias da vitória e da derrota perde esse foco, perde esse objectivo, porque é impossível agradar a dois deuses. É este um desiderato fácil? Não. Mas quem escolhe ser treinador e por-se à prova, é isto que escolhe. Fácil é ter já a opinião pré-definida e toldar a análise para lá encaixar.

Momento da saída-de-bola portista contemplava a segurança como prioridade. Risco nulo que passou a ser ainda mais evidente depois da vantagem conseguida bem cedo. Uma estratégia que teve as suas virtudes (como na assistência de Diogo Costa a Galeno) mas que revelou algumas limitações que Sérgio confessou mais tarde na flash. Algo que se enquadra nos pontos menos positivos de um resultado extremamente positivo. Dupla de centrais pouco rotinada, aglomeração do Bayer na zona média, conforto do FC Porto em forçar segundas-bolas são também explicações que não são erros mas que carecem (como sempre) de melhorias.

PS: Sobre o caso Esgaio, e sobre muitos outros casos, ainda estou para perceber as vantagens de os adeptos queimarem um activo do próprio clube. Será a reação ao erro, nas casas desses adeptos, abordada da mesma forma? Se uma janela não abrir pegam num martelo e partem o vidro? Não ficarão os jogadores mais propícios a errar se estiverem num ambiente que não tolera o erro? Vale para os erros de Esgaio como vale para as saídas de bola intranquilas. Podem passar por isso juntos e ultrapassá-lo juntos? Ou alguém lhes vendeu o sonho de que o Sporting de Rúben Amorim não pode, nem nunca mais iria errar? É que esse [sonho] é uma ilusão. Já a realidade de que para onde vai um, vão todos fica, mais uma vez, na gaveta. O 12.º jogador também joga, e também erra, e, como tal, tem de estar ao nível da equipa e do processo. De outra maneira é só mais um bully que se aproveita das vitórias para se pavonear e que aproveita as derrotas para extrapolar frustrações. Não se julguem verdadeiros adeptos se pertencem a este grupo. Aprendam a ver erros com neutralidade, a apontar algo que pode ser mais com naturalidade, e usem a energia para dar estabilidade, segurança. Um pouco como Rúben Amorim fez com Adán e faz agora com Esgaio. Esqueçam a ideia de que por um ter errado mais, e outro menos, o nível de tolerância tem de ser diferente. Vestem ambos a camisola do clube e um não é menos digno de ter as costas quentes, de se sentir protegido, do que o outro. Talvez os maus momentos sirvam para demonstrar como se pode sair deles, em conjunto, tirando o melhor de qualquer situação por mais negativa que ela pareça. Talvez.

1 Comentário

  1. Desde já os meus parabéns a quem escreveu este comentário.
    Faz refletir quem o lê(mas não aqueles que estão habituados a ler no lateralesquerdo), são estas mentalidades que temos de levar para o nosso futebol português. Está incrivel e devia estar exposto a muita mais gente. Análise perfeita.

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