A base

O medo é sentimento non-grato em futebol. Pelo menos publicamente ninguém admitirá, de bom-tom, que tem medo. Seria admitir uma fraqueza, pensamos. Tudo porque não há uma forma, não há um comprimido, para curar o medo. E essa é uma permanência que cria ainda mais medo. E é nesta espiral que vivemos no futebol, e em sociedade. Não é algo simples como dizermos a alguém que ficou com um bocado de salada preso nos dentes depois do almoço. Pois para isso, fora algum embaraço, a solução é simples: a remoção e posterior limpeza dos dentes. Quanto ao medo, não sabemos bem o que fazer. E a medida mais popular será o mecanismo de defesa que é encontrar um escape mental. Vai correr tudo bem, tenho a certeza, é um mecanismo popular, um penso rápido até à decisão. Mas então e se tudo correr mal somos menos por isso?

Em primeiro teremos de definir o que é bem e o que é mal. No caso do futebol serão as populares vitória e derrota a ditarem a montanha-russa que é a auto-estima de quem anda preso nelas. A vitória, resultado positivo valida-nos. A derrota, nem por isso. E o medo da 2.ª vem do sentimento que é termos de admitir que a nossa abordagem não foi a mais alta (ou se quisermos, em dualidade, não foi a melhor). Teremos assim de repensar, de pôr em causa, de passar por essa chatice toda. Já a vitória tem o condão de validar o que fizemos. Daí que antes de um jogo, ou ao início de uma época, o escape mental se incline para a vitória. Contudo, em dualidade, essa expectativa nunca andará sozinha. Assim, se nos inclinarmos para a vitória como forma de escape, é inevitável que o medo da derrota nos tolde também os pensamentos. E enquanto andamos nestes zigue-zagues não estamos a libertar espaço para fazer a coisa que devíamos fazer logo de princípio: criar. Não me interpretem mal, mesmo com a mente ocupada por objectivos, expectativas, medos, dúvidas e certezas relativas, continuamos a criar. É impossível parar, por mais que tentemos, mas podemos limitar de forma acentuada a criação se deixarmos que todos estes mecanismos assumam a condução do veículo.

À palavra emoção será difícil não conotá-la com energia em moção. As nossas ações serão sempre coloridas com o sentimento que as coloca em movimento. Com qual destas emoções acima caracterizariam o Sporting campeão? Qual escolheriam para caracterizar o desta época? Qual a mais alta? Qual a mais baixa? Qual o Sporting com mais certeza de si próprio? Qual o mais eficaz? Será possível construir auto-estima independente de resultado?



Porém, não há problema nenhum. Nós não temos medo, certo? Ninguém inteligente admitirá nos dias de hoje, antes de um jogo (ainda mais de um clássico, imaginem) que tem medo. Já imaginaram as capas? Otamendi com medo do Porto! Fábio Cardoso tem dúvidas do resultado do Clássico! O ostracismo que se seguiria não seria, porventura, leve. Mas se tivéssemos um polígrafo, e apresentássemos um cenário negativo a cada um deles, com certeza que veríamos oscilações e dúvidas na reação. De facto, uma das ferramentas que podemos usar para encontrar os nossos medos são os cenários negativos. Se alguma figura todo-poderosa vos dissesse hoje que os vossos objectivos de vida não seriam cumpridos, qual seria a reação? Se soubessem hoje com toda a certeza que o vosso sonho não se realizará, qual seria a reação? Fugir ou lutar? Fugir como escape na mente: vai correr tudo bem? é mentira! Lutar? Provar a todos que é possível ainda que Deus o diga. São sem dúvida as reações mais comuns e podemos observá-las em nós se fizermos o exercício. E se as podemos observar em nós, quer isto dizer que todas as nossas ações em relação a esse objectivo vão estar toldadas, e coloridas, pelo medo de o mesmo não se concretizar. Aliás, não será à toa que escolhemos esse objectivo. Pois se fosse dado, se fosse fácil, não seria sequer um objectivo. Tem mesmo de ser algo extra pois, de forma contrária, não seria algo que nos pudesse preencher o ego ao conquistá-lo, compreendem? Todo o objectivo, especialmente em futebol, é colorido por um espírito que veio ao Mundo para tentar provar algo. Mas se tenta provar algo, se tenta chegar a algo – e é aqui que isto se torna interessante – é porque está separado dele. E estando separado jamais poderá sobreviver se o conquistasse definitivamente. Daí um campeonato, uma Champions, uma só vitória não chegar. Depois passa a ser um record de campeonatos, de Champions, de vitórias, de Bolas de Ouro. Para o espírito que está separado, nunca vai chegar. Muito (ou totalmente) porque está lá o medo que o move – tal viciado em álcool, tal viciado em jogo: É só mais um copo…

Se chegasse ele teria que morrer ali. Mas para continuar vivo continua a perseguição.

Dará então para ter a experiência de estar em futebol, de usufruir e desfrutar sem ter medo? Ou teremos que ir viver para um gruta ou sentarmo-nos debaixo de uma árvore a vida toda e não criar porque tudo vem do medo? Ou podemos ainda, pouco a pouco, ir reparando em certas reações mais baixas e escolher ter a experiência de jogar o jogo sem medo, escolher ter reações mais altas? Estamos assim tão certos que as emoções mais baixas da escala nos deixarão mais perto do objectivo? Emoções como a vergonha, a apatia, a depressão, sabemos de antemão que não (ainda que apareçam de forma constante no jogo). Mas a fome e a raiva não nos quererão dizer que nos sentimos incompletos? Que é esse ser incompleto que vai pedir a outros seres incompletos para correrem por um objectivo que os pode preencher? E que mesmo depois de estar ganho vai ter de ser defendido, algo que será impossível de fazer por um período alargado de tempo? É este o objectivo que nos move? Onde fica o espaço para fazer evoluir o jogo, para nos fazer evoluir a nós próprios, para nos divertirmos jogando-o a evoluir? Queremos ser o cego a liderar os cegos? Ou queremos ver a que sentimentos está presa a nossa consciência e ir libertando-a progressivamente de padrões que limitam a performance, de dúvidas que prejudicam as decisões e mostrar a quem nos rodeia que é possível jogar o jogo agindo e não reagindo?

Se recorrermos à Pirâmide de Necessidades de Maslow, podemos apercebermo-nos que a um jogador de futebol de uma equipa de elite estão lhe garantidas as necessidades mais básicas (fisiológicas e de segurança) mas que, normalmente, o jogador (e treinador) persegue o topo da pirâmide (actualização própria) primeiro do que as restantes duas. E assim sendo, torna-se condicional ao garantir que só terá Auto-Estima e Afecto conforme o resultado das suas ações.

E para tal recordo a importância da humanidade básica. Como sabemos, as condições do século XIX não foram iguais às do século XX. Mais ainda, é comum ouvirmos dizer que certo tipo de atitude já não se coaduna com o século XXI. E isto quer lembrar que as condições foram evoluindo. Algo que aconteceu porque cada vez mais se foi tendo em conta a humanidade básica de todos, sem excepção. E enquanto estamos muito ocupados a dar de comer à nossa intelectualidade, debatendo duplas-larguras e espaços entrelinhas, esquecemo-nos de valores e bases milenares que terão de estar presentes em futebol. Bem sei que para termos sucesso teremos de encontrar pontos-de-vantagem, que teremos de criar novo e por vezes até perseguir algo revolucionário. Mas de que valerá isso se quem tem a missão de o materializar estiver a reagir a um medo e não a agir livremente? Não será a nossa primeira missão garantir a humanidade básica dos jogadores, de forma a que nada lhes derrube a auto-estima, de que, independentemente dos cenários, a neutralidade de espírito que permite criar de forma espontânea e livre, jamais poderá ser subjugada? Não é esse um objectivo mais preenchedor do que a luta constante pela Champions que pode nunca chegar? Btw, o Di Matteo tem uma e nunca ninguém lhe ligou mais por isso.

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