Tomada de decisão: uma decisão nem sempre tomada

Da ideia ao modelo, há um longo caminho a percorrer. Treinar é modelar, o que, a nível tático, está intimamente ligado à tomada de decisão.

Vulgarmente encarada como um conjunto de posicionamentos e movimentos em campo, a tática vai muito para além disso. Antes da execução ter lugar, todo o processo inicia-se numa “paisagem mental”, que se quer “igual” (semelhante) na cabeça dos jogadores, sendo esse o grande desafio a nível coletivo de um treinador.

Para um jogo de qualidade é importante ter cinco ou seis jogadores a pensar a mesma coisa ao mesmo tempo.

Jorge Valdano, in Público (1998)

Modelando a tomada de decisão

Podemos afirmar que o tático é decisional, dado que é a supradimensão tática que balizará as decisões que os jogadores tomarão em campo. Contudo, estas decisões não são (ou não deverão ser), a nível probabilístico, umas quaisquer. Tal como refere Oliveira (2006), os jogadores devem resolver os problemas que o jogo lhes colocam “dentro de uma determinada forma de resolução” porque existem “várias formas de resolver os problemas e nós queremos que eles sejam resolvidos com uma determinada lógica”, fruto dos seus princípios de jogo.

Tal como a sua literalidade assim indica, “princípios” não são “fins”. Silva (2008) afirma que, “em relação ao treino, há uma coisa importante: criar princípios, não regras. Os princípios são abertos e dão espaço à criatividade e à tomada de decisão aberta. As regras são fechadas como um ponto final. Mantém-te aberto na comunicação que usas. Pois com isso podes influenciar a equipa a ser mais criativa e a usar a inteligência”. A autora dá ainda alguns exemplos: “se tu disseres: vamos jogar curto por trás, é diferente de dizer vamos encontrar o homem livre, ou vamos encontrar o espaço livre“.

Praxiologicamente falando, os treinadores devem criar exercícios (contextos) com propensões que façam emergir certos tipos de (inter)ações, nas quais os jogadores descubram por si próprios as melhores formas de se ajustar – a tão badalada descoberta guiada. Gozando de uma liberdade sobredeterminada pelos macroprincípios da ideia de jogo, deverão ser os jogadores os responsáveis por recriar esta filosofia ao pormenor. Por isso, o nosso treino deve respeitar a dimensão macro da equipa, mas permitir as condições para os jogadores a recriarem ao pormenor a dimensão micro (Silva, 2008).

Contudo, existe uma condicionante natural do futebol que tem um grande impacto nas decisões que os jogadores tomam em campo: a velocidade a que jogo se desenrola. De acordo com Araújo & Passos (2008), os jogadores acabam por recorrer à intuição para a tomada de decisão, dado o pouco tempo que têm para percorrer todo o ciclo perceção – decisão – execução. Esta intuição não é nada mais, nada menos, que uma decisão subconsciente, que permite resolver determinada situação de forma rápida (Klein, 1998). O próprio Araújo (2005) diz ainda que, na tomada de decisão, o pensamento consciente é secundário. Há coisas que os jogadores fazem nos jogos sem pensar, pois já o haviam feito no passado – é quase como se a “tomada de decisão” não fosse uma “decisão tomada” (pelo menos de forma consciente).

Somatizar um Jogar

Tido mais como algo psicológico do que físico, a verdade é que soma significa “corpo” em grego. Daí, somatizar significa incorporar – no âmbito do futebol, incorporar uma ideia de jogo. O génio internacionalmente conhecido António Damásio aborda a hipótese marcador-somático em 1994, na sua famosa obra O Erro de Descartes. O neurocientista português afirma que estes consistem no recurso aos sentimentos que estão ligados, pela aprendizagem passada, a resultados futuros previstos. Assim, quando um marcador-somático é negativo, este funciona como uma campainha de alarme para o ser humano; ao invés, se for positivo, o resultado é um incentivo. Guilherme (2004) corrobora, dizendo que, quando os jogadores executam uma ação bem sucedida, esta provoca uma emoção positiva e, num contexto similar futuro, essa emoção leva a que a ação seja novamente colocada em prática.

Isto faz-nos a refletir sobre o feedback e as ações dos treinadores. Quantas e quantas vezes já deixámos passar uma excelente ação coletiva ou individual em claro, sem qualquer pompa e circunstância que gravasse marcasse somaticamente – os jogadores em questão no treino, por forma a que os mesmos a repitam no futuro? E qual a percentagem da tomada de decisão que é responsabilidade nossa, dadas as propensões dos exercícios e os nossos marcadores-somáticos, que levam os jogadores a “sítios” onde nunca haviam estado?

Perante determinado contexto em que não há tempo para pensar (de forma consciente), o nosso cérebro recorre ao passado e às situações que foram marcadas somaticamente através de emoções positivas para, de forma subconsciente, levar a cabo uma execução que seja concomitante com estas. Muitas vezes, o ser humano toma um atalho para uma ação que nem o próprio sabe (tem a consciência) que sabe – os tais “automatismos” que tantos procuram, mas sempre tendo em conta o enquadramento (circunstância), para que o mesmo não se torne mecânico!

Ver 1:07:20

[…] Tome em consideração o que acontece quando nos desviamos bruscamente para evitar um objeto prestes a cair na nossa cabeça. Há uma situação que exige ação imediata (isto é, o objeto em queda), existem opções de ação (desviarmo-nos ou não) e cada uma tem uma consequência diferente. No entanto, a fim de escolhermos a resposta, não recorremos nem ao conhecimento consciente (explícito) nem a uma estratégia consciente de raciocínio. O conhecimento necessário foi consciente quando pela primeira vez aprendemos que os objetos em queda podem nos ferir e que é melhor evitá-los ou detê-los do que sermos atingidos por eles. Mas a experiência dessas situações, à medida que crescemos, levou nossos cérebros a ligar diretamente o estímulo desencadeador à resposta mais vantajosa. A “estratégia” para a seleção da resposta consiste agora em ativar a forte ligação entre estímulo e reação, para que a resposta surja automática e rápida, sem esforço ou deliberação, embora possamos tentar suprimi-la de livre vontade.

António Damásio, in O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano


Poema de Vítor Frade

Acho que é concordante
para qualquer ser pensante
que a dita tomada de decisão
como “categorização”
é já um estereotipo
linguístico,
um chavão
cada vez mais esquisito
e casuístico,
sem fundamentação
e para mim uma ficção
mutilante
redutora
e em cada instante
mutiladora,
no que é a interação
e que tanto o treinar
como o Jogar
mutilando-os os vai matar.
A inteligência tem de ser
a única condicional
condição
a treinar …
se se entender
como inteligência
das inteligências
ao Jogar,
cuja referência
das demais que assistências,
o como entende
e pretende,
para cada aqui-e-agora
e variável portanto,
na dimensionalidade
do campo,
no segundo-minuto-ou-hora
e diversa a prioridade,
como emocional
quinestésica ou cognitiva,
mais ou menos racional
mais ou menos intuitiva,
com intimidades diferenciadas
entre amígdala, hipocampo
e cortéx pré-frontal
por exemplo,
com memórias adulteradas
entretanto,
atempadas ou em contratempo.

O humano
não é
um animal racional
já que chegar
ao andar em pé,
causou no racional
muito “dano”
e esse muito demorar,
levou-nos no evoluir
a ter de tomar decisões
instantâneas,
sobre uma base d’informações
insuficientes
e à decisão não podendo fugir,
nem sempre
como tal consentâneas
entre os presentes,
com mais ou menos mente… e aqui como no Jogo
não entra só o cérebro
entra o corpo todo
e só aquele que é ébrio
de fake new sobre
o treinar,
o jogo e o jogar,
tem cérebro pobre
ao querer tantas horas
p’ra treinar…
já e sem mais demoras
não é precisar
“dar-minutos”
para aprender,
até para os putos.
e sim obrigar a inteligência
a estar presente
dominantemente
no “dar-jogo”,
com complexidade crescente
e promotora da competência
isto é, sentir para ser
e assim saber …
é precisamente
quando,
jogando…
e as circunstâncias exteriores
são difíceis, exigentes
p’rós jogadores,
que atitude interior
Se superior
mais conta,
até se de pouco monta
e mesmo que inexprimível
apesar de tudo é dizível,
se bem que transcendentes!

Vítor Frade, in Inteligência de Jogo e Análise Táctica


Bibliografia

Araújo, D., & Passos, P. (2008). Fundamentos do treino da tomada de decisão em desportos colectivos com bola. Porto: Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.

Araújo, D. (2005). O contexto de decisão – A acção táctica no desporto. Visão e Contextos

Damásio, A. (1994). O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano. Putnam Publishing.

Klein, G. (1998). Fontes do Poder – O Modo como as Pessoas Tomam Decisões. Instituto Piaget.

Morawski, S. (2020). Inteligência de Jogo e Análise Táctica. Mindfootballness.

Oliveira, J. (2004). Conhecimento Específico em Futebol. Contributos para a definição de uma matriz dinâmica do processo ensinoaprendizagem/treino do Jogo. Dissertação de Mestrado. FCDEF-UP. Porto

Oliveira, J. G. (27 de Janeiro de 2006). Entrevista realizada ao prof. José Guilherme Oliveira. (M. Silva, Entrevistador)

Silva, M. (2008). O desenvolvimento do jogar, segundo a Periodização Táctica. Pontevedra: Coleção Preparação Futbolística.

Valdano, J. (1998). Notas finais sobre o Mundial. Jornal “Público”, 14 de Julho de 1998.

Sobre Yaya Touré 36 artigos
Amante do treino. Pensador do jogo. 💡

1 Comentário

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*