Føøt Baller 2049: uma viagem ao futuro

2049. Os androides apoderaram-se do jogo. Mas os rebeldes, de espécie humana, ameaçam a sua reconquista: será deles o futebol do futuro.

O reinado dos cyborgs, que tomaram de assalto o futebol, parece já ter um fim à vista. As trevas que assolaram o nosso jogo, tão humano que chegou a ser nobremente apelidado de jogo do povo, com jogadas mecanizadas, missões táticas, funções específicas e toda uma vasta panóplia de critérios baseados apenas numa posição, estão prestes a terminar.

O maior elogio que eu senti esta época foi uma análise (…) à equipa do Rio Ave nos diversos momentos do jogo, a defender, a atacar e nas transições. Classificou o Rio Ave como uma equipa muito completa, e eu acho que o Rio Ave era uma equipa muito completa. Porque sabia defender alto, sabia defender baixo, sabia pressionar à frente, sabia transitar perto da baliza adversária, sabia transitar muito bem quando estava a defender mais baixo, quando os adversários nos obrigavam a fazer isso e era uma equipa que atacava muito bem com bola.

Carlos Carvalhal, in Tribuna Expresso

Décadas já passaram desde os primeiros vestígios dos princípios de jogo. Evoluímos para o modelo com Mourinho. Tocámos o céu com o Barcelona de Guardiola, que atordoámos com o rock n’roll de Klopp. Iniciámos a era da estratégia (tantas vezes referida aqui no Lateral). Ressuscitámos a clássica marcação individual lá para os lados de Atalanta, e foi também em Itália que vimos Conte a iniciar uma hegemonia com a Vecchia Signora, que repetiria em Londres e que levaria consigo no regresso ao seu país, assente numa estrutura com três defesas. Talvez os Maias também previram que todas estas tendências nos trariam até onde chegámos hoje: o futebol está cada vez menos compartimentado e os jogadores têm de saber jogar de todas maneiras e feitios. Jogar o jogo todo!

Conferência de imprensa de Jorge Jesus, após o Benfica 1 vs. 1 Arsenal

Aprendes a ter de gerir isto, a ter de entrar logo no jogo seguinte, a reformular, a não perder a tua identidade, mas a perceber que o Newcastle te obrigou a jogar numa perspetiva de o desmontar com um determinado tipo de jogo e a ter de condicioná-lo de uma forma quando perdes a bola e, passados três dias, com a mesma base e com os mesmos jogadores, vais enfrentar um adversário que também tem de ser desmontado mas com problemas completamente opostos, porque vai jogar direto e procurar segundas bolas e sob o ponto de vista físico é muito mais forte. Tens de ter a astúcia de pensar nisto tudo e reformular estratégias. Foi isso que me levou cada vez mais a pensar que se calhar os sistemas de jogo, aquilo que definimos como 4-4-2, 4-3-3, na minha opinião, são castradores, porque muitas vezes é o próprio sistema que castra as dinâmicas das equipas.

Carlos Carvalhal, in Tribuna Expresso

“Não interessa o sistema; o que importa são as dinâmicas”. Mais badalada do que sentida, o que é certo é que esta máxima tem toda a lógica. Contudo, nem todos a interpretam da melhor forma. Com a generalização da estratégia, a flexibilidade das equipas na forma como se têm de adaptar a diferentes constrangimentos de diferentes adversários ganhou especial importância. No caso inglês, por exemplo, é necessário saber desmontar um Newcastle e parar as suas transições, como também é preciso ir ao ar disputar a bola de cabeça frente ao Burnley, ou então conseguir sobreviver no Ettihad com os 20% de posse de bola que o City nos reserva.

Basear-nos apenas em mudanças de sistemas é loucura. Definir um modelo que, inclusive, mais do que princípios, tem fins, é muito pouco. Acrescentar a preocupação estratégica com o adversário seguinte, também começa a ser insuficiente. O jogo caminha para equipas líquidas, isto é, todos têm de saber fazer tudo. O pensamento cartesiano, que soma 11 partes diferentes à espera de um todo, já não tem nexo. Agora, é ao contrário: todas as 11 partes têm de conter em si o Todo!

Rui Vitória sobre Futebol em diferentes contextos, in Sindicato dos Jogadores

No vídeo acima, Rui Vitória aponta a importância do entendimento do jogo. É precisamente essa a função do treinador hoje em dia, principalmente o de formação: fazer com que o jogador analise, por si mesmo, o que se está a passar e tome uma decisão, à luz dos macroprincípios, sendo estes mais que suficientes. O velho papel com 50 sub-princípios de jogo para cada momento é altamente castrador – já chegaram à conclusão que, a cada sub-princípio que é adicionado, é menos uma oportunidade que estamos a retirar aos jogadores de estes poderem ler e interpretar o jogo? Já repararam que dizer a um avançado “cada vez que a bola está do teu lado, tu baixas em apoio e o avançado do lado contrário aparece em rutura”, é equivalente à programação de um chip que irá ser colocado num androide, para que ele execute a ação sem qualquer tipo de razão e emoção? Quanto menos sub-definições existirem, maior liberdade estaremos a dar aos nossos jogadores, sendo esse o terreno fértil da criatividade! O treinador é cada vez mais um orientador da famosa descoberta guiada – que tantas vezes é só guiada e pouco tem de descoberta! – e é aqui que os jogadores passam a entender o jogo, de forma autónoma e construtivista.

Como é que consegues uma equipa com uma identidade clara e um modelo claro, se ela joga de uma maneira e de outra?
Porque essa é a identidade.

Jogar de várias maneiras?
Essa é a identidade. A nossa identidade é a flexibilidade. Fizeram-me uma questão pertinente um dia destes, num fórum. Perguntaram-me sobre o peso da estratégia no nosso jogo. Eu respondi assim: o peso da estratégia é todo e nenhum.

Carlos Carvalhal, in Tribuna Expresso

E como se dota a nossa equipa dessa flexibilidade? Ao invés de ser explicado a cada parte (jogador) detalhadamente o que deve fazer, será mais enriquecedor explicar a todos o como é que o Todo (equipa) deve atuar! Desta forma, teremos extremos capazes de jogarem como laterais (escute-se o exemplo dado por Rui Vitória), avançados que normalmente atuam como médios (Fabrégas na Seleção Espanhola e Gündoğan mais recentemente no Manchester City) ou até médios que passam a jogar como laterais (Kimmich e Arnold). Se a equipa pensar a mesma coisa ao mesmo tempo e relevar um forte entendimento do jogo, todos conseguirão ajustar-se e reajustar-se perante diferentes constrangimentos e dar uma resposta coerente.

Segundo Oliveira et al (2006, p. 217), um fractal é uma parte invariante ou regular de um sistema caótico que, pela sua estrutura e funcionalidade, consegue representar o todo, independentemente da escala considerada. Isto significa que todo o nosso Jogar deve estar dentro de / representado em cada jogador, o que leva a que todos sejam completos o suficiente para responderem a qualquer tipo de adversidade. O Todo tem uma parte que em si tem o Todo.

Esta abrangência de jogo de cada jogador é desenvolvida através da passagem por diversas posições na formação, os diferentes contextos que os treinadores recriam no treino e a riqueza dum modelo de jogo que deve construído nos detalhes pelos próprios jogadores, sem nunca fugirem do radar dos macro-referenciais. Está para nascer a primeira equipa que encerre em si tantos e tão completos jogadores em simultâneo! Aliás, se o Jogar dessa equipa abranger o jogo todo, o peso da estratégia será, citando Carvalhal, nenhum!

A próxima grande tendência do futebol mundial serão as equipas sem sistemas táticos que as castrem, estratégias que a descaracterizem e que, simultaneamente, nunca perdem a sua identidade e organização desorganizada. Quem será o primeiro treinador a lá chegar?

Senhoras & senhoras, sejam bem-vindos a 2049: a era da Re-Humanização!

Não há chutos na bola, há Homens que chutam!

Manuel Sérgio

Bibliografia

Cabral, M. (12 de Agosto de 2020). Esta é a nova forma de Carlos Carvalhal pensar o treino e o jogo: “Os sistemas, aquilo que definimos como 4-4-2 e 4-3-3, são castradores”. Obtido de Tribuna Expresso: https://tribunaexpresso.pt/no-banco-com-os-misters/2020-08-12-Esta-e-a-nova-forma-de-Carlos-Carvalhal-pensar-o-treino-e-o-jogo-Os-sistemas-aquilo-que-definimos-como-4-4-2-e-4-3-3-sao-castradores

Oliveira, B., Amieiro, N., Resend, N. & Barreto, R. Mourinho: Porquê Tantas Vitórias? Editora Gradiva. Lisboa. Portugal, 2006.

Sobre Yaya Touré 36 artigos
Amante do treino. Pensador do jogo. 💡

1 Comentário

  1. Análise espectacular para onde deve caminhar o futebol. Mas com a pressão da necessidade da vitória os treinadores nunca tem tempo para aplicar. Sempre que alguém começa a obter visibilidade os tubarões vão lá buscar, mas rapidamente o treinador deixa de ter autonomia para implementar a sua metodologia.
    O Carvalhal tem conseguido a espaços projetos onde lhe dão liberdade e os resultados vão aparecendo…

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