O Quinto Elemento

Cinco facas emocionais cravadas no nosso coração futebolístico. Sim, cinco. Não corria ainda tempo suficiente para se saber muito sobre o Portugal-Alemanha (até a atribuição da UEFA à equipa que jogou em casa pareceu irónica) e já Gosens, Löw & cia mostravam ao que vinham. E depois daquele suspiro de alívio quando o VAR interviu, toda a portuguesa gente que, agora sim, já percebia um pouco do que estava a acontecer, pediu uma só coisa: que aquilo não se voltasse a repetir. Teria então sido um benção que todo o ponto de vantagem que a Alemanha levou para o jogo se tornasse visível tão cedo? E o que foi realmente aquilo e porque nos dói tanto?

E aqui, já depois de uns largos dias após do jogo (desculpem falar em largura, bem sei que só a palavra reacende um trauma) até podia discernir calmamente sobre o que o novo futebol pede e, talvez, tentar levar a água ao meu moinho, puxar a brasa à minha sardinha, e explicar-vos aquilo que acho de sofrer cinco (vou sempre incluir aquele golo anulado por tudo o que podia ter significado), cinco golos da mesma maneira. Mas no momento em que escrevo estas linhas, não sei ainda se o vou fazer, se vale sequer a pena. O que vos posso dizer, ao certo, é que a minha reação ao ver aquele quinteto de situações acontecer andou um pouco pelos 5 estágios do luto, processo esse que terá muito a ver com uma morte que aconteceu em Munique. Falo da brilhante conquista do Europeu em 2016 – que iniciou um processo que nos faz sonhar. Onde, por força da inclusão de uma nova e excelente geração de jogadores, e por força de um status criado pela conquista de outro título em 2019, qualquer jogo é para ganhar! Um processo e conquistas que não só nos fizeram pensar que algo como o que se viu em Munique seria impossível, como nos faz agora agonizá-lo tremendamente, arranjando para isso mais de um vintena de bodes expiatórios, se assim for necessário.

Afinal de contas, o futebol é algo que nos permite isso mesmo. Que responsabilidade temos nós no insucesso do nosso clube ou Seleção? Nenhuma! Confere-nos a desculpa perfeita para passearmos a nossa sabedoria porque temos zero responsabilidades, e como impolutos que somos (talvez pela primeira vez na vida) podemos abraçar aquela forma primitiva de poder que é transportar ódio ou raiva para outrém.

Confesso que há muito que me apercebi que esse era um dos meus modus operandi em relação ao futebol. Também eu critiquei abertamente muitos duplos-pivots (alô, Paulo Fonseca! um enorme abraço!), também eu critiquei muitas daquelas apostas europeias de treinadores portugueses em mais um central, numa linha de cinco, se quisermos. Já critiquei também muitos blocos baixos porque preferia morrer com a ideia. Been there, seen that, done that! E por isso sei muito bem que a raiz desses processos fundamentalistas nasce da sensação de poder que advém de criticar e da necessidade de validação em relação às nossas ideias e, por arrasto, a nós próprios.

Daí, de há uns tempos para cá, ter escolhido outro caminho. Não um caminho totalmente definido e fechado, mas um em que escolho aperceber-me de quando entro nesse processo pouco construtivo. Ainda que os erros dos treinadores sejam visíveis, alguns até incompreensíveis, tentarei sempre perceber o que os leva a isso. Outra coisa seria a aceitação total, ou a defesa cega das opções de qualquer treinador (e isso seria só idiota), mas ao escolher tentar saber o outro lado, ou pelo menos não o ignorar, corro o risco de crescer na aprendizagem. Isto é, vou à procura de mais dados, novas formas e perspectivas – ao invés de atirar para a mesma a solução milagrosa, meter para o bolso algum reconhecimento e validação que dão um prazer temporário, e viver disso enquanto der.

E não, não escrevo isto para dizer que sou melhor do que quem o faz. Porque apesar de tentar não colar perspectivas, isso não quer dizer que não as cole, ou que acerte sempre, ou que o que digo tem sempre alguma validade. Mas o que posso dizer, é que vou-me apercebendo que o comentário e a análise mais comum sofre de incongruências bem visíveis – as minhas incluídas – e que o futebol como todo ultrapassa-nos largamente. E se bem se lembram, a conversa do outro dia era sobre jogo-interior. E o jogo de sábado o que nos mostra? Golos, situações e vantagens com o lado de fora a ser nuclear. Algo que nos remete para quem, como eu há uns anos, criticava a inclusão de mais um central como a renúncia à identidade. E o que o jogo de sábado nos mostra? Que uma linha de cinco (bem organizada) asseguraria um maior controle da largura e que, provavelmente, Gosens não teria o mesmo protagonismo se Nélson Semedo (o maior visado sem culpa alguma) tem hipóteses de cobrir as bolas que o ala germânico tocou na área, ou perto dela.

Várias hipóteses mas sem querer dizer que outros problemas não surgiriam. A) Bernardo Silva que, no momento do passe para a ala descoberta, fecha dentro. B) Danilo baixa para o meio dos centrais, forçando William para a sua frente. Em nenhum momento Portugal esboçou algo do género. De destacar também o posicionamento alemão a atrair para o meio para procurar depois a ala descoberta. Ainda bem antes de ficar nos holofotes já Gosens leva vantagem sobre a organização defensiva portuguesa com o cruzamento a ser feito, sem qualquer oposição, por um dos centrais

Mas seria assim tão simples? Provavelmente nunca saberemos, mas o facto é que o futebol vai mudando e as perspectivas, planos, identidades, modelos não podem ficar estáticas. Talvez muitos dos que criticam a chuva de linhas de cinco na Liga NOS compreendam agora melhor as dificuldades de jogar contra um sistema que obriga a um controle maior da largura, onde as identidades antigas têm dificuldade ou não chegam mesmo. E não querendo ser brusco, parece-me que o problema da Seleção foi mesmo esse: o de tentar manter uma identidade assente numa linha defensiva de quatro que lhe deu os seus únicos dois sucessos europeus. Parece-me claramente que a opção só pode ter sido a de renúncia à linha de cinco (que se podia fazer temporariamente de inúmeras maneiras) e tentar resolver o problema sempre de 451 armado.

Mas quer assim tenha sido, quer não (e pelo caminho nunca vamos saber, porque a maioria das perguntas que se vão fazendo ao selecionador só revelam o desinteresse de quem as tem feito), o jogo de sábado inclui ao habitual press or drop um utilitário change. Sim, a pressão poderia ser uma solução e poderia, temporariamente, solucionar o problema. Mas não acreditando que a Alemanha não conseguisse quebrar essa pressão (duas ou três vezes 😉 os jogadores de Portugal teriam que ter bem definido o momento para controlar essa largura. Isto é, entrar já de 541 em riste traria outros problemas, e a verdade é que o 451, ou o 442 a defender têm vantagens mais altas e se a bola andar por essas zonas o desenho deveria andar mais próximo desse. Mas é inegável que quando a bola chegava à ala direita alemã, o desenho não se poderia manter, por não haver controle algum da largura que Gosens dava. Assim, o momento ideal para a metamorfose seria ainda antes da bola chegar à ala, tentando controlar o jogo em organização defensiva. É que à medida que alteras os desenhos a defender, vais controlando as hipóteses que o adversário tem. Tens é de as anteceder, de perceber os triggers para alterares (Olá, Sérgio Conceição! Forte abraço!). E isso é bem diferente de dizer linha de cinco sempre! ou linha de cinco nunca! E cumprindo a promessa de que ia tentar entender o lado de Fernando Santos e as suas opções, parece-me evidente (ainda que não o possa provar, como já dito) que não houve tentativa alguma de incluir algo à habitual linha de quatro. Não diria despreparação, mas claramente a intenção de não alterar um caminho que lhe deu sucesso ao incluir novas formas de defender para um adversário em especial. E isso, por se falar da Seleção por si só, mas por ser também uma equipa que criou uma aura de superioridade sem bola, cria algum desapontamento esta falta de encaixe no 343 germânico. Mas explicar melhor só Fernando Santos o poderá fazer. Isto se realmente lhe quiserem perguntar.

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