A cruz do FC Porto

Quão Porto foi o FC Porto da fase-de-grupos da Champions League? Bem, em muitos aspectos foi até mais Porto que o costume. Talvez por isso deixe um enorme amargo de boca aos portistas a morte na praia que aconteceu nesta terça-feira frente ao Atlético Madrid no Dragão. E agora que se vê o todo, essa era uma morte que se foi anunciando pelo enorme handicap que o FC Porto demonstrou num dos capítulos mais importantes do jogo – e que se voltou a revelar determinante no jogo decisivo do Grupo B. Mas antes de nos debruçarmos (mais uma vez) sobre essa questão, convém contextualizar e tentar torná-la impessoal. Isto porque conhecendo o clube, a cidade e a região, sei também que há a tendência de matar o mensageiro, aquele que é visto como inimigo por apontar algo que não está onde deveria estar. Daí a pergunta inicial: quão Porto foi o FC Porto na fase-de-grupos da Champions League? E se nos debruçarmos sobre a criação de oportunidades, sobre o controle de jogo, sobre o agigantar-se a adversários também eles gigantes, então o FC Porto foi muito Porto nesta fase-de-grupos. Mas se analisarmos a definição, tornando como momentos-chave, as situações de finalização, então este FC Porto ficou muito aquém daquilo que é ser Porto na sua essência. E isto, sublinhe-se mais uma vez, não é uma crítica. Não é o atirar de um defeito para cima da mesa para enfraquecer o clube na praça pública. É sim, o princípio daquilo que se pode fazer quando as coisas não estão (ainda) ao nível de onde podem (ou deveriam) estar. É que para as curar, para as transcender, há que vê-las, reconhecê-las, primeiro.


Fica difícil não dizer que as oportunidades que o FC Porto desperdiçou impediram a qualificação para os oitavos-de-final. Fica difícil também prometer uma panaceia para que estas bolas (e outras que não estão no vídeo) entrassem todas. Ainda assim, a forma como se reage mentalmente à bola que não entra conta imenso para as próximas. E fica claro que o FC Porto entrou em espiral negativa, dando a sensação clara que as reações foram de desconfiança, dúvida e descrença ao invés de outras, mais positivas, que libertassem os jogadores para o seu maior potencial. Ou alguém acredita que há falta de qualidade técnica para não marcar estes golos? Porém seria muitíssimo mais preocupante se as oportunidades não fossem criadas, dando ideia que o FCP está a um pequeno clique mental do que realmente augura.



Não há então que esconder que tivesse o FC Porto mais killer instinct e, muito provavelmente, a classificação para os oitavos surgiria à quinta (ou até quarta) jornada. Um FC Porto que no geral esteve muito competente em todas as partidas (exceptuando contra o Liverpool em casa), disputando-as, competindo por cima dos dois adversários com quem lutava directamente pelo apuramento. Mas um mal (que só não condicionou totalmente o resultado frente ao Milan em casa) meteu-se à frente da equipa em jogos como o do Wanda Metropolitano, o de Anfield e o de San Siro – sendo que a vitória neste último esteve bastante ao alcancedos dragões. Daí que o sentimento de injustiça venha tornar-se predominante nas análises à prestação europeia dos azuis-e-brancos nesta primeira metade da época. O problema é que o conceito de injustiça atrasa os clubes, atrasa as análises e atira as culpas para algo subjectivo. Não se pode pegar no conceito de injustiça e, por si só, resolver problemas. Isto porque se virmos o jogo de uma perspectiva mais desapegada, menos subjectiva e, acredito, mais real, os jogos que o FC Porto disputou mais não mostram que um padrão. Não mostram um defeito, não mostram uma injustiça, não mostram uma fraqueza. Tudo isso são conceitos criados para nos manter presos à cruz. Ao vê-lo como um padrão podemos desligar-nos de nos vermos como fracos ou incapazes. Podemos desligar-nos também da ideia de que o jogo não gosta de nós e que algo externo não nos permitiu a conquista do objectivo. E a realidade deste FC Porto é de que está a duas ou três verdades de ser uma das grandes equipas que o clube já teve.

Muitas perdas de bola redundaram num atraso em relação ao que Sérgio Conceição realmente pretendia no jogo. Muitas divididas de parte a parte, intensidade e duelos marcaram os primeiros minutos de um FCP que foi perdendo demasiadas oportunidades para assentar o seu jogo – partindo o jogo algo desnecessariamente e colocando em causa o plano. Algo que haveria de mudar ainda na primeira metade.


Há então o padrão de criar muito, de encostar adversários valorosos às cordas, de lhes colocar imensas dificuldades e de encontrar os seus defeitos. E há o padrão de não materializar essas chances naquilo que mais interessa em futebol. E contra os colchoneros, o FC Porto – acusando de alguma maneira o peso do jogo – não foi logo aquele Porto que colocou a pata no jogo desde o início. Muitos passes errados, muitas decisões pouco fluidas, levaram a uma falta de controle que levou a um desequilíbrio que tornou o jogo incerto. A ideia passaria por fazer ao Atlético aquilo que se fez ao Milan. Mas as decisões incertas na ligação meio-campo/ataque colocaram em causa a decisão de Sérgio Conceição em abordar o jogo de forma diferente do que havia sido feito em Madrid. Por não estar à espera de tanta indecisão nessa ligação, o técnico portista viu o jogo partir e viu, em algumas situações o miolo tornar-se uma ilha entre defesa e ataque. Mas ao manter essa aposta, e ao acreditar nela, o FC Porto conseguiu nos minutos vindouros ser a equipa que Sérgio idealizava. Conseguindo mais acerto nas decisões e ocupando o meio-campo ofensivo com grande presença na reação à perda, Otávio, Taremi, Evanilson &cia (Luis Díaz esteve quase sempre enjaulado) conseguiram elevar o nível para algo mais próximo do padrão que tanto deve orgulhar quem criou os pergaminhos do Futebol Clube do Porto.

Pouco a pouco os dragões foram impondo o seu jogo e o plano de Sérgio foi-se materializando. Empurrar constante e uma reação à perda brutalmente intensa levaram o FCP para mais perto de Oblak. Tudo criado por uma maior eficácia e segurança no passe – algo que ligou finalmente o Dragão à corrente.



Mas com esse padrão a emergir foi impossível ao FC Porto fugir ao outro padrão que se tem ligado a esse para estragar as contas e torná-las desfavoráveis. E aqui a perspectiva de como se analisa esses acontecimentos tem que ser chave. Como vamos escolher ver algo que se repete? Como um castigo? Como algo incurável? Ou vamos vê-lo como um padrão que se repete porque nos está a mostrar algo que devemos transcender? Será chave aqui que se veja isto de uma forma impessoal porque de outra maneira estaremos a confirmar que este padrão realmente faz parte da identidade da equipa e que é o melhor que ela pode fazer. E é por isso que não se pode esconder a questão. Por não ser o melhor que o FC Porto pode fazer é que não se pode meter isto numa gaveta e esperar que se resolva sozinho, que desapareça por si só. Esse é o wishful thinking que não funciona em futebol (nem em nenhum outro campo da vida). Outra reação comum é lutar contra o problema, dando origem a uma batalha que consome demasiada energia e que depois (quando já estamos fracos) nos faz fugir do problema. A chave, mais uma vez, é não vê-lo como um problema, mas sim como um padrão.

Mas como pode o FC Porto realmente ultrapassar este padrão?

Primeiro que tudo devemos lembrar (ou relembrar, até porque já vos venho chateando há muito com isto) que só há um problema quando não há solução. Ninguém no FC Porto verá como um problema que um jogador sofra uma leve entorse a uma semana de um jogo. Quando muito é um problema temporário. E como se conhece a solução, isso não é visto como um problema. Mas no que toca à finalização e à definição de lances a ciência futebolística anda um pouco presa em correntes ideológicas que não lhe permitem ver uma solução eficaz. Algo que se vê constantemente no desempate pela marcação de grandes penalidades, onde já se assumiu (finalmente) que só o treino não chegará para se obter o resultado desejado. Assim, a tentativa de recriar num qualquer campo do Olival as situações em que os avançados, médios ou extremos do FC Porto bloqueiam não arranjará, por si só, a solução. E porque não o faz? Porque não recria na totalidade. Pode recriar o desenho e pode recriar a situação física, mas um treino nunca recriará as reações que um jogo de Champions, e uma situação de um para um num desses jogos desperta aos jogadores. Da mesma maneira que todos entendemos que o penálti decisivo na Final de um Campeonato do Mundo não pode ser recriado num treino.

Por não recriar as sensações, as reações que esses momentos decisivos provocam é normal que nos treinos, ou em jogos de outro cariz, essas bolas entrem todas. É natural que alguém que nos treinos marca dez em dez não seja afectado por reações que num momento decisivo de um jogo decisivo aparecem para toldar a mente. Não me parece assim que o problema (o padrão) do FC Porto seja físico ou curável somente pelo físico. É que se é a reação àquele momento específico que condiciona os jogadores, então esse padrão é curável transcendendo essa reação. E onde se encontra essa reação? Onde todas as reações se encontram. É que como há um corpo físico, também há um corpo emocional, como também há um corpo mental, como ainda há também um corpo identitário. E a solução para o FC Porto está num desses três corpos. O físico, e os padrões vistos nesta fase-de-grupos (tanto os bons como os maus) são o mapa. Os corpos identitário, mental e emocional dos jogadores são o real território onde o FC Porto (ou outro clube qualquer) pode realmente transcender padrões que depois se mostram no físico.


Aqui chegamos a uma questão essencial. Pode uma situação física em futebol criar medo? É uma questão complexa porque é natural que certas situações provoquem a certos jogadores sensações de medo ou de dúvida. Mas porque provoca a uns e não a outros? Não será o medo, ou a dúvida, algo que já está presente na mente desses jogadores e que se revela quando uma certa situação física (que pode ser uma situação de finalização ou de golo iminente) a desperta? O que torna tão difícil a transcendência desses padrões é que qualquer jogador (ainda mais no FC Porto!) dirá que não tem medo. Dificilmente alguém no futebol admitirá que tem medos e dúvidas sob pena de ser visto como fraco. O problema é que o futebol não deixa escapatória. Deixa tudo à vista. Mas mesmo que deixe nunca se deve considerar nenhum jogador como incapaz porque há uma certa situação que revela em si um sentimento que o impede de melhor definição. Fosse Taremi imune a reações negativas, fosse Otávio imune a reações, fosse qualquer outro jogador do FC Porto imune a reações, e há muito que já não estariam no Olival a treinar com Sérgio Conceição. E olhando para a história do clube, e para jogadores quase imunes à importância do momento (e foram tantos!) notamos que foram esses que construíram as eras douradas do clube. Mas também notamos que a partir do momento que atingiram esse nível, rapidamente se lançaram para outros voos. O FC Porto tem assim à disposição jogadores em processo evolutivo e não feitos. E para esse processo evolutivo acontecer, olha-se para os padrões em campo, para as reações que certos momentos provocam, e trabalha-se para se ultrapassarem, transcenderem ou resolverem (como preferirem). Nada de épico aqui. Nada de anormal. Nada de mau. Nada de injusto. É simplesmente natural que o Bayern de Munique, que o Manchester City, que o Chelsea se vire para jogadores mais imunes a reações porque têm dinheiro para o fazer. E se um falha, os dólares são suficientes para se ir buscar outro que não falhe. O FC Porto (e o Sporting e o Benfica) têm de fazer diferente. Não são mais fracos, mais incapazes, os seus jogadores. Estão sim em processo evolutivo. E essa evolução passa também por ultrapassar certos padrões de dúvida que se notam em certas situações.

Assim, se eu perguntasse a qualquer adepto do FC Porto, antes desta edição da Champions começar, se a podiam ganhar, acham que a reação a essa pergunta não provocaria dúvidas? Se perguntasse se podiam ganhar ao Liverpool em Anfield, depois de todo o historial que já existe contra a equipa de Klopp, acham que essa pergunta não provocaria dúvidas? E se todos concordamos que certos objectivos provocam dúvida nos adeptos (exceptuando alguns de fé-cega), porque é que achamos que os jogadores (e treinadores) estão imunes a isso? É perfeitamente natural que numa competição que pode castigar brutalmente as equipas, os jogadores terem reações negativas ao pior cenário. Ninguém do FC Porto espera ser goleado em Paços de Ferreira, Portimão ou no Dragão frente a nenhum clube da Liga. Mas quando falamos de Champions o pior cenário está presente e assombra. Mais ainda, não só o pior cenário pode retirar o FC Porto dos objectivos. E ninguém quer ficar ligado a isso. Especialmente quem assume o encargo de finalizar jogadas que podem dar ou retirar ao clube os objectivos a que se propõe. É perfeitamente natural. Tão natural como ir à origem dessas dúvidas e transcendê-las. Há irrealidade nessas dúvidas. Diria até mentiras. Cabe ao FC Porto olhar para o corpo de identidade dos seus jogadores (quem realmente são?), para o corpo mental (o que podem realmente fazer?) e para o corpo emocional (com que força manifestam o que podem fazer?) e mostrar-lhes a verdade do que é ser o FC Porto em todas as situações que o futebol lhes puser à frente. Ou há alguma dúvida que não falta capacidade técnica e física para finalizar aquelas situações? E se não é físico, é o quê? Identidade, mentalidade, emocionalidade e fisicalidade são as quatro extremidades de uma cruz que prende não só o FC Porto mas todos os clubes que têm um padrão a impedi-los de estarem mais perto de onde querem estar. Cabe-lhes libertarem-se das ideias que criam essa cruz – que é como quem diz, não admitirem que algo limite a mente dos seus jogadores, não admitirem que certas situações de um jogo lhes provoquem dúvida. Quantas dúvidas tinham Deco, Falcao, Madjer, Futre (e muitos outros) nos seus melhores tempos ao serviço do clube? Talvez muitos não possam chegar ao desempenho desses, mas mesmo não podendo, que experiência querem ter? Com dúvidas? com medo? com limitações? ou sem nada disso? Com certeza o desempenho será diferente consoante a escolha. A escolha de aceitar que nada em futebol nos pode limitar a mente e não alterará quem realmente somos.

A maneira como o FC Porto se deixou cair na esparrela colchonera é também digna de atenção. Para quem viu o fabuloso documentário The Last Dance fica difícil esquecer o trabalho psicológico que os Bulls tiveram de fazer para derrotarem os Pistons. Algo que envolveu um enorme desapego ao bullying dos de Detroit. No jogo em que finalmente os Bulls bateram os Pistons, a equipa de Phil Jackson estava não só fisicamente bem preparada para aguentar como nunca reagiu às patranhas adversárias. Para a história fica o ignorar de Scottie Pippen a quem o agrediu, como que a dizer que nada que os Pistons fizessem podia magoar os superiores Chicago Bulls. Uma lição para um FC Porto que viu o futebol ser cancelado por mais de dez minutos e que acabou por ver um jogador seu ser também expulso. E para marcar os golos que precisavam, os dragões teriam de ter feito todo o esforço para que se jogasse outra vez. Pelo contrário, o banco envolveu-se numa escaramuça e um jogador expulso entrou para o campo não se sabe à espera do quê – e minutos preciosos fugiram das mãos da equipa que mais precisava. Reações a rever, certamente.

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