A jogar é que a gente se entende

Treino Pep Guardiola

Futebol de “régua e esquadro”: para muitos, é sinónimo dum “jogo evoluído”; para Vítor Pereira, um erro comum que vários treinadores cometem.

O ser humano sempre apresentou alguma dificuldade em lidar com o imprevisível. Os constantes eventos emergentes do caos causam alguma ansiedade e levam a um eventual descontrolo do cenário vivido. Esta é a principal razão que leva um treinador a orientar o seu treino para o comportamento – um chip que contém um programa fechado e que substitui o cérebro do jogador, para este execute à risca o que lhe é pedido. Por isso é que vários treinadores se baseiam única e exclusivamente no jogo posicional. “Quando a bola estiver ali, tu tens de estar aqui, tu acolá e tu além”. Chega-se ao cúmulo de lhes pedir “mais 1 metro para o lado”. Tal e qual… de “régua e esquadro”.

Vítor Pereira, in Quarentena da Bola

Ele (jogador) não é agente, é reagente e, portanto ao ser reagente está a fazer um ditado [a cumprir com algo unívoco e “fechado”], não está a fazer uma redação [um texto “aberto” ao inopinado, com espaço para a criatividade]. Ele tem que saber fazer uma redação até para descobrir, ser criativo, ele tem que saber que tema é, e depois domina o tema melhor ou pior em função da informação que tem do tema. […] Através do teleponto, tudo o que tem que fazer já está pronto, e o que procuram é um comportamento sem ambiguidade, o que é o contrário daquilo que eu lhe disse inicialmente, quando falei de tomada de decisão, que é um sistema extremamente sensível às condições iniciais. E eles [treinadores] querem a não ambiguidade. Nós poderemos criar mecanismos, mas não são mecanismos não mecânicos. Não é a mesma coisa. Nós somos um mecanismo, mas não somos mecânicos […] O jogo não é um filme e eu (jogador) sou espectador. Há coisas que surgem que emergem depois. Ora bem, eles treinam comportamentos, não treinam ideias. Não dão autonomia. E então, obriga isto a colar-se a cada um dos formatos formatados, que é o que quando estão usando as cartilhas de circunstâncias, até a dizer que existem os manuais com os exercícios prontos, que é uma estupidez.

Vítor Frade, em entrevista a Paulo Henrique Borges

A ambiguidade que Frade (2015) refere está ligada à não linearidade do futebol. Isto deita por terra a definição de comportamentos à priori. É necessário viver – e conviver – com este infinituum. Entender, de uma vez por todas, que as jogadas mecanizadas resultam até que a bola começa a rolar. Pois esta, durante o jogo, não percorre um único caminho, mas bate e resvala numa infinidade de cenários para os quais os mecanismos mecânicos não estão preparados. A rigidez que os tais comportamentos implicam transformam o individual – e, concomitantemente, o coletivo – em verdadeiras rochas, quando, na verdade, o sucesso passa, muitas das vezes, pela capacidade que a equipa tem em se adaptar a diferentes contextos e seus constrangimentos, necessitando, para tal, duma propriedade flexível, quiçá mais próxima da plasticina.

As regras duras que me ensinaram a atravessar a rua, não me permitiriam nunca estar neste cruzamento a querer passar dum lado para o outro do passeio.

Rui Quinta, em Construção de uma Ideia de Jogo, para a Associação Nacional de Treinadores de Futebol

É de assinalar a forma como o tráfego em Saigão, Vietname, atinge um nível de “desorganização organizada”. O grau de complexidade é enorme, mas as interações entre os diferentes condutores, advindas duma rotina diária, permitem que cada um se ajuste aos diferentes constrangimentos que vão emergindo, sem que isso signifique um sem-número de acidentes. Transportando este cenário caótico para o jogo, verificámos a forma líquida e fluída como a Alemanha de Löw, campeã mundial em 2014, permitia que os seus diferentes intérpretes interagissem e criassem, de forma autónoma, novas dinâmicas face aos obstáculos que o contexto lhes colocava.

Brasil 1-7 Alemanha | Mundial Brasil 2014

Neste lance, do célebre Brasil 1-7 Alemanha, Schweinsteiger, que atuou como médio mais defensivo, começa por abrir ao lado de Hummels. Enquanto isso, Kroos (MCE) coloca-se entre os centrais. Schweinsteiger identifica um espaço livre nas costas da primeira pressão do Brasil e executa um movimento de rutura entre linhas, de forma a ser solução. A certa altura, vemos Kroos (MCE) atrás de Schweinsteiger, enquanto Khedira, que, no papel, jogava como interior direito, surge no final do vídeo na posição de extremo direito, que supostamente era ocupada por Müller, que entretanto havia aparecido no corredor central. Desorganização e anarquia, ou harmonia perfeita com a complexidade (e ambiguidade) do jogo?

Carlos Carvalhal, para a Associação Nacional de Treinadores de Futebol

Aceitar o jogo e as suas propriedades é abraçar a complexidade. É não querer controlá-la na íntegra (até porque tal é impossível!), mas sobredeterminá-la, de maneira que, ao nível do detalhe, haja espaço para que sejam os jogadores a criar as suas próprias dinâmicas, que emergirão da interação entre eles.

Como diz o Professor Vítor Frade, “para o detalhe não há equação”. É um plano que sendo imprevisível, contempla uma propensão para se constituir como um imprevisível mais previsível. Isto porque surge sobredeterminado, ou seja como uma emergência contextualizada pelo plano cientificável do processo, daí caos determinístico.

Jorge Maciel, entrevistado por Luís Esteves

É necessário pôr de parte a visão mecanicista com que se olha para o fenómeno dinâmico do jogo; ao invés, o treinador deverá ter a arte e engenho de “aconchegar” o jogador na sua individualidade dentro duma ideia coletiva, para que este possa contribuir para um melhor Nós sem nunca perder as particularidades que caracterizam o seu Eu. No fundo, ter uma ideia suficientemente rica e abrangente para que o jogo do treinador possa “entender” e abarcar o jogo do jogador.

Carlos Carvalhal, para a Associação Nacional de Treinadores de Futebol

Jogo é treino e treino é jogo. É nesse ambiente que os jogadores agem e interagem – fazendo jus às palavras de Carvalhal, “olham uns para os outros”. Se o futebol é simples e ser simples é complicado, talvez seja altura de descomplicar: exercícios jogados e fiéis à essência do futebol, com poucas regras, estarão mais abertos à complexidade. Esta intervirá e fará brotar novas dinâmicas dentro da nossa equipa, desenvolvendo, assim, o nível de entrosamento entre os seus intérpretes.

Não há “régua ou esquadro” que consiga substituir aquilo que acontece no jogo, de forma pura, natural e espontânea. Afinal, é a jogar que a gente se entende.


Bibliografia

Frade, V. (2015). Periodização Tática: Fundamentos e Perspectivas. (P. H. Borges, Entrevistador) Campinas: Revista da Faculdade de Educação Física da UNICAMP.

Maciel, J. (15 de Setembro de 2011). Entrevista de Luís Esteves a Jorge Maciel. (L. Esteves, Entrevistador)

Pereira, V. (17 de June de 2020). Quarentena da Bola | Vítor Pereira. (R. Marques, Entrevistador)

Sobre Yaya Touré 36 artigos
Amante do treino. Pensador do jogo. 💡

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