Real Certeza

Bruxaria contra os Mentality Monsters. Foi assim que foi vendida, em certa parte, a Final de Paris a quem, ansiosamente esperava por ver o confronto entre o Real Madrid e o Liverpool. E ainda que o nickname dado ao Liverpool pela imprensa britânica esta época não tivesse intenção pejorativa, fica difícil não fazer o trocadilho com aqueles monstros que temos ‘na cabeça’ aos quais uma parte crente e esotérica da população tenta combater com bruxos e mezinhas. Assim, vista dessa forma, tivemos uma Final em que a bruxaria imperou sobre aqueles mostrengos que atacam a mente. Mas o que se esperava era certamente o contrário. E isso seria certamente os reds de Klopp a fazerem imperar não só a sua mentalidade, mas a sua intensidade e o seu jogo completo (um dos mais evoluídos da Europa), vergando um Real que, ao fim ao cabo, estaria ali por sorte.

Liverpool fiel ao seu estilo e ideia. Pressionantes desde o primeiro minuto até ao último mas a não conseguirem capitalizar o domínio criado. Não será então fácil explicar uma derrota onde os reds foram em quase todos os aspectos a equipa que nos habituaram a ser, contra uma equipa que estrategicamente não é tão evoluída mas que levou a sua avante.

Finado o jogo mais uma lição da realidade em futebol prevaleceu. Algo que não é novo, porém. Algo que até acontece regularmente e que já tem ‘barbas blancas’. Um gigante que é o Adamastor das teorias como forma de controlar um jogo que, ao fim ao cabo, só é validado com golos. Sim, eu sei que no alto de todos os livros que lemos sobre bola, de todas as teorias e estratégias que compramos, deixamo-nos encantar facilmente com a ideia de que tendo a teoria, modelo e estratégia, mais completas, o Universo, subitamente, nos abrirá todas as portas e castigará os infames que nos ousarem enfrentar com coisas rudimentares. Mas a verdade, verdadinha, é que a única coisa que valida teorias, modelos e estratégias é… o golo – ou se quisermos: marcar mais desses do que o adversário. Bem sei que vai longa a luta contra esta realidade. A perseguição ao Santo Graal que finalmente nos dará o paraíso de ganhar sempre e de, mais importante, nos dar o reconhecimento de estarmos do lado certo do Mundo, do lado dos mais evoluídos e que, por arrasto, nos dará a sensação de sermos dos mais evoluídos também. É uma luta do ego, portanto. E esse nunca aceitará uma realidade que não a dele. Basta ver como estrabuchamos quando perdemos. Foi disto, foi daquilo. Culpa nossa não foi ou não tivéssemos nós a estratégia mais evoluída, mais completa, mais capaz. Algo deve estar errado com o futebol e não connosco. Jamais o modelo estaria incompleto.

Real Madrid a oscilar entre lançamentos longos e um pé-para-pé que pode parecer tudo o seu inverso. Ainda assim percebe-se o uso dessas duas ferramentas quando se percebe que a ideia foi sempre não desposicionar defensivamente. Ainda assim, fica evidente a preparação mental para o domínio territorial como a verdadeira certeza no aproveitamento das oportunidades que, mesmo, o Liverpool também concede. Algo que nesse clube não acontece só agora, numa história de crenças e certezas que toda a gente bem conhece. Parte desta campanha assenta nessa mentalidade, nessa certeza, nessa vibração alta nas emoções dos merengues.

E assim é e assim será. Foi-o também em 1982 (só para dar um exemplo) quando o Aston Villa (imagine-se) ganhou a Taça dos Campeões Europeus. Por entre penáltis defendidos, bolas no poste e defesas com a ponta dos dedos, os villains chegaram a Roterdão para enfrentar o mighty Bayern de Munique. E mais ainda que nesta Final do passado sábado (onde muitos estavam já avisados para a bruxaria) as odds eram altamente desfavoráveis aos de Birmingham. E como se não bastasse, também toda a nação olhava de soslaio para estes rapazes vestidos de grená. O resultado, porém, vai dar ao mesmo do da história acima. Uma equipa tenta anular a outra e aproveita a chance (ou chances) que tem. E desde quando é que passámos a fazer disto um bode expiatório contra quem ganha? Desde quando é que a equipa que ganhou teve sorte e a equipa que perdeu não podia ter feito mais?

Como dito, não é fácil encontrar erros no Liverpool. O conjunto de Klopp actua sempre num nível muito alto daí que encontrar oscilações de rendimento esteja só ao nível de pequenos detalhes. O Liverpool criou, jogou como de costume, e só pecou ao nível da finalização, de alguns erros não-forçados e no menor brilho de algumas individualidades – que ainda assim não podem ser acusadas de um jogo pobre. Não é assim, entre o bom e o mau, que se vai encontrar oscilações neste Liverpool. Será sempre entre o bom, o muito bom e o excelente. Para o nível subir ainda mais, a monitorização das reações e emoções dos jogadores poderá ser uma hipótese.

É um facto desta Final (a de 2022, mas também a de 1981, como muitas outras) que o Liverpool (neste caso) fez o seu jogo habitual. Assentou bagagens no meio-campo adversário por via do seu já habitual jogo posicional e por lá ficou fruto do famoso pressing e reação à perda. Foi também vista em Paris a excelente intenção de explorar entrelinhas de forma sistemática a desequilibrar organizações ou, em caso de perda, a deixar o jogo num cenário de transição que os reds também adoram (pela sua organização e força nos duelos, o Liverpool aceita arriscar mais do que a maioria das equipas e perder bolas porque pode ganhar com isso. Contra organizações defensivas muito fechadas, os segundos com bola do adversário podem ser uma da forma de os desorganizar, caso a bola se ganhe logo após). Gegenpressing, portanto.

Real a apostar numa forma híbrida de defender. Valverde muito participativo e com dois papéis muito importantes. Fechar a ala e a linha defensiva consoante a posição de Robertson; fechar o meio, à entrada da área, se o lateral inglês não fosse uma ameaça. Algo que ainda assim não impediu os reds de arranjarem forma de chegar à área merengue. Na imagem, Robertson aberto na ala direita e Salah pronto a receber entrelinhas – com Mané na esquerda e Díaz mais ao centro. Casemiro sempre a rondar o espaço do 9 do Liverpool, com Kroos e Modric (com alguma ajuda de Benzema) a tentarem controlar o tridente do miolo de Klopp.

Ora, o Liverpool fez tudo isto. E, aparte de alguma falta de frescura (o pressing não foi tão agressivamente contínuo como já o vimos ser, como também foram várias as perdas não forçadas que lembraram um pouco Villarreal) os reds conseguiram criar algumas chances. E se o jogo habitual (com um pouco menos de qualidade em relação ao normal) foi realizado e ainda assim a melhor equipa perdeu, alguma coisa deve estar errada. E isso é um facto. Algo está errado. Está errado sim, mas na interpretação que se tira disto. É que faltou, essencialmente, algo para o Liverpool não ter vencido (ou pelo menos se ter adiantado com uma vantagem confortável) o Real Madrid. E dir-se-á que é simples. Era o Liverpool ter marcado, obviamente. Mas porque não marcou se assim o faz sempre?

E aqui é que a porca torce o rabo. Temos uma equipa imaculada naquilo que é, não só jogar de forma altamente competitiva como também na, arte de fazer golos sempre que mais os precisa. O que mudou afinal? E para quem não fica satisfeito com jogos de sorte e azar, diria que a Final de Paris fez reagir os jogadores de forma diferente do habitual. Algo que foi visto nos tais erros não-forçados (que ainda assim não impediram o domínio esperado) mas principalmente nas exibições menos conseguidas de Salah e Díaz, monstros no 1v1 que desta vez não o conseguiram ser com a sua normal regularidade. Logo aí a produção normal não pode ser o que costuma ser, visto os principais alimentadores estarem de, aqui e ali, folga. Mas, fruto da sua qualidade (em todos os aspectos e momentos) mesmo num dia ‘assim-assim’, o Liverpool conseguiu criar chances que normalmente finaliza – algo que, como sabemos, não foi o caso.

Algumas considerações de Thomas Tuchel sobre o medo de perder ou a certeza de ganhar, depois de uma derrota frente ao Manchester City – equipa que havia derrotado na passada Final da Liga dos Campeões. E se faltaria algo nesse capítulo, se a vibração estiver mais baixa, ninguém melhor para sabê-lo, para notá-lo de imediato, do que alguém que construiu e usufruiu imenso da mentalidade do Chelsea na época transacta.

E assim sendo, o que se pode fazer aqui? Clamarmos contra o Mundo, contra o jogo que dizemos que amamos (mas que se calhar só amamos a parte boa – seja lá o que isso for para uns e outros)? Obviamente há mais para saber aqui. Poderá é cheirar a bruxaria, pois o Real, mesmo sem modelos refinados e estratégias de topo, acabou por ser eficaz o suficiente para levar a 14ª(!!!!) orelhuda para casa. Quer isto dizer que qualquer equipa que não se tente desorganizar defensivamente e que solta umas transições pode ganhar a Champions? Com certeza que não, mas fica a nota para se perceber que a este texto não interessa a habitual guerra de estilos, de estratégias ou lá o que seja. O que é que o Real teve que o Liverpool não teve? Algo que poderia ser ao contrário, se o jogo dos reds funcionasse como de costume (já o dissemos, funcionou na génese, mas não na eficácia).

Certeza de ganhar vs Medo de perder

O que o futebol não tem, hoje em dia, é explicação para o fenómeno (que é visto como um fenómeno por ser algo inexplicável mas que não o é na realidade). E não tem explicação para o fenómeno porque é ainda algo rudimentar a medir a vibração de uma equipa. Sim, isso mesmo: a vibração de uma equipa. Basta dizer-se ‘vibração’ em futebol e metade do Mundo ri-se e desvaloriza. Mas o que é certo é que por mais que se tenha evoluído na análise de tácticas, estratégias e modelos (altamente essenciais, concordo) o futebol (ou quem o segue e analisa) não tem ainda maneira de controlar o que valida essas tácticas, estratégias e modelos. E não o tem porque foge a sete pés de uma análise mais construtiva à mente de quem o joga. Assim, a título de exemplo, poderemos ter a ‘melhor’ estratégia, o ‘melhor’ modelo (alô, Klopp) e ainda assim quem tem a missão de o validar está a reagir negativamente ao jogo que pretende ganhar. Este é um exemplo no qual se poderá dizer que a equipa, aparte de ter conseguido recriar o seu jogo habitual, vibrou de forma mais baixa que o costume.

Obviamente a explicação não poderá ficar por aqui. O que de facto acontece é que os jogadores ao invés de agirem, passam a reagir. O que é um costume de alguém que tem um medo, ou receio. Age em função desse medo ou receio – ou seja, passa a reagir-lhe, e não a agir de forma livre. Assim se vibra mais baixo, pois a identidade, a mente, a emoção e a ação estão coloridas com esse medo. Contudo, o medo em futebol é tabu. Esconde-se, mete-se numa caixa debaixo da cama e espera-se não o encontrar mais. Mas a realidade é que há sempre algo no Mundo que o desperta. E pode muito bem ser uma Final da Champions (ou algo decisivo, de tudo ou nada) que o traz à tona de novo. Temos então forma de saber se os nossos jogadores estão a agir livremente ou estão a reagir a medos e dúvidas que têm nos corpos identitário, mental, emocional? Eu diria que há um esforço no campo psicológico para se evoluir nesse sentido mas que ainda faltam muitas milhas até que se possa chegar à forma de trabalhar a mente para se agir livremente independentemente de reações a qualquer medo que se tenha. Mais ainda quando as interpretações habituais resvalam todas para a guerra de estilos e para a sorte ou azar. “Ah se aquela bola entrasse” ou o já habitual e justiceiro “se havia alguém que deveria ter ganho…” . Se calhar há mais para saber porque não entrou. E até pode ser que a outra equipa esteja a agir e não a reagir e por isso foi mais eficaz – desde o guarda-redes ao avançado. O que não quererá dizer que se passará a acertar sempre, ou que finalmente se arranjou a teoria miraculosa que nos validará sempre. Porém, é uma questão de evolução, de liberdade, de criatividade, de usar o erro como plataforma para evoluir. Uma alquimia de emoções que ajudará a melhores, e mais claras, decisões e que ajudará as equipas a elevarem os seus padrões mentais para atributos que só costumamos distinguir nas melhores – ou vencedoras. Afinal de contas que experiência queremos ter? Com medo ou sem medo? É que há até quem tenha medo do sucesso… mas como em futebol tudo isso se guarda numa gaveta, nunca saberemos – até acontecer outra noite normal como a Final de Paris.

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