Os criativos que resistem – talentosos que correm

“Foi muito importante. Ele tinha um frase que me dizia e era engraçada mas fazia sentido. Da forma que eu jogava há dois anos, apenas daria para eu jogar em dois ou três clubes, tendo em conta a posse de bola e ser muito técnico. Faltava mais coisas. O que ele me ajudou a tirar de mim e ao meu jogo, encaixo em qualquer clube do Mundo e, certamente, no melhor clube de França”

Vitinha, sobre Sérgio Conceição

Não há juiz maior do que aqueles que moram nas bancadas. Para eles, os maiores arrepios vêm, quase sempre, das emoções provocadas pelo alterar do resultado. Nunca será só isso e ainda bem. No que toca à beleza do jogo, quem o vê, partilha, quase sempre, uma sensibilidade para com o talento. Os mais fortes aplausos saíram e sairão sempre para aqueles que jogam a um toque, para os que combinam entre si, para os que driblam e surpreendem quem paga o bilhete. Mas o mesmo público que é sensível ao talento que se relaciona com o trato da bola, também premeia, quase sempre, os que se esforçam. Mais fácil de identificar do que a inteligência de jogo, o empenho físico raramente escapa da análise do comum dos olhares. Mas não será só essa a razão das palmas que estes jogadores recolhem. Mais do que a dificuldade da tarefa, estes aplausos elogiam a mentalidade. 

Acho que facilmente conseguimos concluir que os maiores problemas do jogo de futebol não são de ordem física. Jogar futebol com qualidade não é, do ponto de vista físico, extremamente exigente. Não quero com isto dizer que as capacidades físicas não são importantes e relevantes. São. Os mais altos e mais fortes podem ter vantagens. Os mais rápidos poderão muito bem ter vantagens. Mas a verdade é que necessário um ótimo percurso formativo para que os mais altos e fortes surjam, no alto nível, com níveis técnicos de excelência. A essa qualidade técnica devem aliar-se decisões de qualidade. Entendimento tático. E é essa combinação de atributos que é mais rara. Talvez faça sentido falar disso mais tarde, mas concluindo: correr tanto quanto necessário não é a tarefa mais difícil que o jogo de futebol nos propõe. 

Talvez porque se tenha chegado a essa conclusão, desvalorizou-se o “correr”. 

Arrastados pela evolução tática do jogo ao longo dos últimos anos, surgem argumentos que tentam justificar a perda de talento e o desaparecimento da criatividade. É evidente que o crescimento do estudo do jogo encurtou os espaços e, consequentemente, o tempo disponível para se tomarem decisões. As organizações defensivas coletivas funcionam de forma coordenada e concentrada. Isso dificulta, obviamente, quem ataca. 

Perante a falta de espaço, urgem criativos – jogadores capazes de resolver problemas com qualidade e em espaços reduzidos. Por essa razão, percebemos que não foi o encurtar dos espaços que afastou os criativos. Pode-lhes ter dificultado a vida mas não lhes retirou importância. Eles continuam a ser essenciais, talvez, mais do que nunca. 

Será então o rigor das tarefas ofensivas que limitam a expressão de quem mais talento tem? Poderá ser. Ainda se opta muito pela obrigação ao invés da explicação. E nesses casos a expressão criativa estará ainda mais limitada. Porque a verdade é que o talento individual tem de ser desenhado num papel onde moram mais talentos. E para que não se perca a coerência coletiva, têm de existir limites. Mas estes limites deverão enquadrar sem empobrecer. Missão difícil, sem dúvida. Ainda assim, a tolerância com os rebeldes criativos que correm é grande. Bem maior do que a tolerância com os rebeldes que criam mas não correm. 

A evolução tática ofensiva também aumentou as dificuldades de quem defende. Foram introduzidos inúmeros conceitos táticos que potenciam ataques mais difíceis de contrariar. A velocidade com que a bola circula aumentou porque os caminhos estão recheados de opções, quer em largura quer em profundidade. Os posicionamentos adotados hoje em dia dificultam imenso quem se dá ao luxo de defender com menos do que onze jogadores. 

Talvez por isso ache que o que vai afastando alguns criativos é a necessidade de correr, muito e BEM. Ser intenso no jogo de hoje é fundamental! Estar no sítio certo, à hora certa obriga a um estado de concentração e uma qualidade de interpretação do jogo gigantes. Mas não só. No futebol atual, para se estar no sítio certo, à hora certa, de forma constante, é obrigatório correr bastante. Para defender as cada vez mais complexas organizações ofensivas, são necessários onze jogadores – conectados, ligados, solidários e intensos. 

O problema é que muitos dos talentosos assumiram, através de um estatuto histórico e fortemente enraizado, que quem corre muito são aqueles a quem “alguém” se esqueceu de distribuir a técnica e a criatividade. Os melhores, correm menos. Assumiu-se que de forma a esconder as limitações técnicas, alguns jogadores apostavam tudo no estatuto de operário. E durante muito tempo acredito que tenha sido mesmo assim. Mas agora não chega. Não chega ser operário mas também não chega ter qualidade e ser burguês. 

A desculpa da poupança física aparece muitas vezes. Há quem diga que é para estarem “fresquinhos” para o que vem a seguir, como se correr para trás e para pressionar significasse um esforço equivalente a subir os Alpes. Não é verdade. O problema, na maioria dos casos, não é físico. É mental. Falta predisposição e mentalidade a muitos dos que melhor tratam a bola. Significa que devem ficar de parte? Não necessariamente. Mas que começa a ficar mais difícil para alguns deles, parece-me inegável. 

Quando se defrontam os melhores, não há espaço para a preguiça. Nas equipas que mais ganham ultimamente não falta talento. Não falta criatividade e rasgo. Há muitos talentosos nesse futebol de excelência. São talentosos que correm! Que não têm vergonha de correr com medo que isso ponha em causa o valor do que fazem quando têm a bola nos pés.  

As marcas da nossa qualidade não devem enfraquecer a nossa personalidade. Os humildes, aqueles que tratam bem a bola e surpreendem têm espaço em todas as equipas do mundo. Mesmo nas que querem ser rigorosas. Aliás, são determinantes e altamente procurados. 

Aliado ao talento e à inteligência, surge o próximo requisito: que corram muito e que queiram correr bem. 

Para esses, nunca faltarão as palmas.

Sobre Bruno Fidalgo 83 artigos
Licenciado em Ciências do Desporto. Criador e autor do blog Código Futebolístico. À função de treinador tem aliado alguns trabalhos como observador.

1 Comentário

  1. Tema um bocado repetitivo, sinceramente (ia jurar que há dez anos se discutiam aqui coisas parecidas, mas posso estar enganado), e depois o texto apresenta algumas ideias que me parecem puros estereótipos: do tipo “quem não corre” – o que é correr neste contexto, isto mede-se como, em quilómetros?, número de sprints?, é como? – “é preguiçoso”, não “corre” porque “tem vergonha”, enfim, são argumentos que não me satisfazem minimamente. Então e se há um gajo/gaja que é fortíssimo no passe e ou no desarme ou na finalização mas que não é tão forte fisicamente – porque a equipa não procura se adaptar a essa realidade, disfarçando-a, por exemplo? Será que não estamos perante um treinador ou outra coisa qualquer que no fundo também não tem um mínimo de feeling e que não aceita mudar um pentelho nas suas equipas só porque sim? Será que se o JJ tem pensado num meio-campo com um Ramires, salvo seja, a falso ala teria mais sucesso na época passada? Lembro-me do VP a falar do Mangala no FCP para explicar que a equipa estava trabalhada para ele tocar pouco na bola quando em construção. Portanto, estes argumentos aqui são no fundo um mimetismo da sociedade em que vivemos, onde para algumas mentes apenas são válidas as medidas 78-60-77. Fora disto é o deserto. Mas depois a realidade pode ser um bocado mais amarela, amarela-torrada, verde-escura ou mesmo vermelha às bolinhas brancas. Estou apenas a reflectir um bocado…

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