A “inteligência” num jogo complexo  

“Com o passar dos anos cada vez tenho visto que o futebol é mais físico, mais para jogadores rápidos, não é para aqueles jogadores que são espertos, que sabem ler o jogo, que se sabem posicionar. Acaba por ser um futebol muito mais de velocidade, muito de velocidade e potência.”

Pizzi, numa entrevista interessantíssima ao Canal 11

Facilmente percebo a sensação partilhada por Pizzi. A realidade é que as exigências do jogo têm mudado. O perfil dos jogadores vai mudando mas continua a ser essencial ser esperto, saber ler o jogo e posicionar-se com qualidade. Acredito que essas qualidades, que não são exclusivas dos que melhor tratam a bola, serão sempre importantes para jogar no alto nível. É atrás delas que andam os melhores treinadores do mundo. 

Classificar a inteligência dos jogadores é algo extremamente difícil. Fazê-lo através de um rápida análise pode levar-nos a algumas incoerências. O futebol é um desporto demasiado complexo para que sejamos tão deterministas neste tipo de observação. Há demasiadas tarefas a cumprir e raramente vemos jogadores a ser eficazes em todas elas. Um jogador fortíssimo na construção pode ser péssimo a decidir perante a última linha do adversário, em zonas de criação. Um jogador fabuloso a mostrar-se entrelinhas pode ser desastroso a procurar a profundidade. Um jogador forte fisicamente pode ser altamente criativo e um jogador dotado tecnicamente pode não conseguir tomar boas decisões com regularidade. Não é fácil avaliar o grau de inteligência de um jogador de futebol. Obviamente que é possível avaliar a qualidade das decisões de forma global e calcular o grau de “conhecimento do jogo” mas é importante perceber que os rótulos “inteligente”, “não inteligente”, raramente funcionam. Funcionarão ainda menos quando utilizamos generalizações para catalogar grupos de jogadores.

O bom futebol necessita de muitas coisas. Talvez por isso necessite também de jogadores muito diferentes. São muitas tarefas e nem sempre é fácil encontrar jogadores que as conheçam de forma consciente. O futebol que privilegia a posse como arma para criar e conquistar espaços, também necessita de jogadores capazes de entender os timings e as intenções dos movimentos de profundidade. Também necessita da potência e velocidade, sempre associada a ações inteligentes. 

No jogo atual há sobretudo espaço para aqueles que são mais completos ou, sendo menos completos, são determinantemente fortes em algum aspeto importante. A inteligência de jogo, a qualidade das decisões serão sempre relevantes, independentemente do perfil do jogador.

Se há coisa que o futebol nos ensina é que há espaço para uma diversidade infinita de jogadores. Há várias qualidades que podem tornar um jogador eficaz mas nenhuma delas se torna decisiva se não for acompanhada pela inteligência necessária à resolução dos problemas impostos pelo jogo. A força e a velocidade nunca serão só força e velocidade. Terá de haver um pressuposto tático a dar sentido e utilidade a tais capacidades. O mesmo acontece com a técnica e por isso a escolha não é entre jogadores mais “físicos” ou mais “técnicos”, entre velocidade ou inteligência. As qualidades não estão obrigatoriamente dissociadas. A escolha é sobre o conjunto, o todo referente às qualidades de cada jogador e a utilidade para a ideia coletiva.

A evolução do treino nos escalões mais jovens tem permitido que as características morfológicas não definam o futuro técnico desses jogadores. Pelo menos é algo que faz parte do caminho que acho que se deve percorrer. Desta forma, mesmo os jogadores que costumavam resolver problemas fazendo sobretudo uso das suas caraterísticas físicas, chegam aos patamares superiores com níveis técnicos suficientes e, em vários casos, muito bons. Ainda anteontem, observámos a agilidade corporal e qualidade técnica do gigante Haaland. Sempre inteligente na forma como se esconde dos defesas demonstra recursos infinitos para finalizar. Para além da inteligência corporal, possuí uma inteligência de jogo que lhe permite potenciar todas as suas qualidades físicas e técnicas. Dificilmente isto seria possível sem um percurso formativo de qualidade.

Unindo as peças, porque é o todo a dar sentido às partes, há espaço para todos, como Pizzi acaba por reconhecer na fase final da sua resposta. Cada um idealizará o jogo como pretende, com as “inteligências” que prefere. Mas um pouco como na sociedade, há várias formas de se ser inteligente e para um correto funcionamento precisamos delas todas. 

“A técnica é, do meu ponto de vista, o rimeiro pré-requisito para um futebolista. A arte, se quiser.”

Jürgen Klopp

Os mesmo treinadores que dão importância ao poder e qualidade dos movimentos em profundidade, que fazem sobressair a potência e a velocidade de deslocamento, continuam a valorizar a qualidade “técnica” dos executantes. A relação com bola é, sempre que acompanhada por uma intencionalidade tática, uma marca determinante no sucesso individual dos futebolistas. Numa pasta particular coloquei, recentemente, alguns exemplos que me chamaram à atenção. São notas de como é importante perceber a bola e o jogo! 

  1. O corte dado à bola por parte do Cucurella para redefinir o efeito e manter a bola jogável para fazer o cruzamento. 2) O passe do Henderson que com um subtil efeito mete a bola a rodar de modo facilitar o cruzamento em curva de Arnold. 3) A forma como Pote retira o efeito da bola para a imobilizar e diminuir assim o tempo necessário para servir o seu colega.

O efeito que se dá, ou que se retira à bola para que a ação seguinte seja mais fácil – é usar a técnica para antecipar e potenciar a ação seguinte – é a técnica que nunca será só técnica. É a inteligência que é essencial mas nunca será exclusiva dos que melhor tratam a bola. Cada um a usar o que de lhe melhor tem, sempre através da inteligência de jogo.

Todos estes pequenos exemplos mostram-nos ações inteligentes. Com e sem bola. Desde os mais “técnicos” aos mais “físicos”, todos eles demonstrativos que a inteligência não é exclusiva de nenhuma “espécie futebolística” em particular.

Sobre Bruno Fidalgo 83 artigos
Licenciado em Ciências do Desporto. Criador e autor do blog Código Futebolístico. À função de treinador tem aliado alguns trabalhos como observador.

1 Comentário

  1. Futebol mais físico em detrimento da inteligência?

    Vide o recente Eintracht Frankfurt vs. Sporting (lá). Os alemães foram só pernas e nada de cabeça. Para ser mais preciso, practicamente não vimos neles manifestações de revisão de tomada de decisão.

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