Carlos Carvalhal responde ao Lateral Esquerdo – queres ser como os Grandes, faz como eles!

white corner field line on artificial green grass of soccer field
Ao contactar o Mister Carvalhal para que nos possibilitasse esta série de questões, voltámos a encontrar um treinador do alto rendimento extremamente receptivo ao nosso apelo. Tenho a agradecer-lhe, por isso, a disponibilidade que mostrou desde logo, e o tempo que perdeu com estas antigas glórias do futebol mundial. Agradecer ainda mais pela forma como educa quem o ouve e lê, tornando sempre mais rica a cultura de quem quer saber mais e é, como nós, apaixonado pelo jogo da inteligência e qualidade técnica, da organização colectiva, em sobreposição ao resto. Estamos muito orgulhosos por saber que nos lê, que nos segue, que partilha alguns dos nossos pensamentos.
Lateral Esquerdo (LE)  – Quem é o melhor jogador que viu jogar? Se não quiser especificar um, construa o seu onze de sonho…

Carlos Carvalhal (CC) – Maradona. A minha infância foi preenchida pela magia de Maradona. Num destes dias conheci-o aqui no Dubai. Falei com ele, fiz-lhe uma comunicação sobre o nosso trabalho no Al Ahli e tirei umas fotos. Senti-me um menino feliz ao pé do meu ídolo de adolescência.
Por ironia do destino, conheci Zico aqui também. Falta conhecer Cruyff…
LE – Existe algum/ns momento/s do jogo que considera mais importantes do que outros?
CC – O jogo é “Uno”, “Indivisivel” e fluído. Não há momentos mais importantes do que outros, todos são importantes porque estão ligados uns com os outros.
LE – Quais são as suas referências ao nível do treino, e do jogo?
CC – As nossas referencias são sempre as melhores equipas do mundo. Quando treinávamos na terceira divisão (por exemplo o Leixões) os nossos referenciais eram sempre as equipas de top. As vezes poderia custar uns pontos no nosso campeonato, mas era aquilo que perseguíamos. Talvez devido a esse facto chegámos na altura à final da Taça de Portugal. Continuamos na mesma esteira ainda hoje… “queres ser como os Grandes, faz como eles”.
LE – Quais foram as principais dificuldades nos países fora de portugal ao nível de treino e de aquisição? O que foi mais difícil de ensinar?
CC – O treinador Português é muito evoluído e adapta-se com facilidade ao meio onde está a trabalhar. Para além das competências tácticas e técnicas o treinador luso é muito forte na componente emocional, cria laços com facilidade e isso também contribui para fazer a diferença. A dificuldade muitas vezes é a ideia arcaica do jogar que persiste em alguns países. As dificuldades, algumas vezes, passam por convencer os jogadores e a estrutura que há outros caminhos para preparar uma equipa para jogar. Passando a fase da desconfiança, o treinador português marca claramente a diferença.
LE – Há alguma coisa que considere que seja transversal em todos os modelos?
CC – Cada treinador imprime uma impressão digital nas equipas que organiza. Podem existir alguns aspectos que sejam comuns, mas no detalhe serão sempre diferentes. E no detalhe é que está a diferença para melhor ou pior.
LE – Quando chega a um clube novo, quais são as principais preocupações ao nível da operacionalização? Quais são (normalmente) as apostas para que a equipa fique o mais rapidamente possível a jogar como quer?
CC – O único caminho para modelar uma equipa é o treino. Desde o primeiro minuto de treino, procuramos através de exercícios Específicos incorporar a nossa Ideia de Jogo, de forma a chegarmos à ideia utópica da nossa forma ideal de jogar. Utópica porque nunca lá chegaremos… Ao modelarmos a equipa através dos Princípios do nosso Jogo para os 4 momentos de jogo – sem nunca esquecer a ligação entre estes – há sempre algumas coisas que podemos melhorar, e outras coisas que se vão perdendo no decorrer do tempo e jogos. No fundo, modelar uma equipa é uma permanente construção/reconstrução.
LE – Exemplifique algum princípio que queira ver sempre e tenha sempre conseguido implementar. Ou o inverso, um relato de algo que ele queira mas que em determinado momento não tenha dado. E o porquê?
Pela minha experiência, o mais difícil de incorporar nos jogadores que chegam às nossas equipas pela primeira vez é o momento de transição defensiva. Ter a posse da bola e perde-la exige uma mudança mental muito brusca para a voltar a recuperar. Exige muito treino e muita paciência para chegar a um nível elevado. Se for para reagir e voltar à “posição” é fácil, mas se queres em função da identificação do momento do jogo uma reacção organizada, Intensa e com qualidade, vai exigir muito dos jogadores e principalmente de ti. Ter a bola para atacar é mais atrativo para os jogadores, logo será mais fácil pelo lado emocional a absorção dos princípios de jogo. Ganhar a bola para atacar (transição ofensiva) é igualmente atrativo, e os jogadores chegam ao que queremos com relativa facilidade. A forma como trabalhamos a nossa organização defensiva é muito bem recebida pelos jogadores, principalmente pela eficácia das ações. Esta, por ser muito complexa leva algum tempo incorporar os pormenores (sub dos sub princípios) mas como o fazemos com complexidade crescente o entusiasmo e a evolução é constante.
LE – Resuma cada momento do jogo, do seu modelo de jogo, em duas palavras no máximo. 
CC – Bolas paradas ofensivas e defensivas – Concentração e Eficácia.
Organização ofensiva – Talento e Inteligência.
Transição defensiva – Interpretação e Intensidade.
Organização defensiva – “Rede” e Organização.
Transição ofensiva –  Interpretação e Primeiro passe.
LE – Como é pensar como mostrou no seu livro – Recuperação é muito mais do que recuperar – jogar zona, e encontrar jogadores que toda vida conheceram o h-h? Quais são as principais dificuldades no ensino de comportamentos zonais, e como as ultrapassa?
CC – Para quem tem um passado de muitos anos a jogar HxH não é fácil modelar um jogador para ter um comportamento zonal. Este, tem como principal referencia o jogador adversário, a sua “anulação” e muitas vezes faz perseguições ao adversário direto para fora da sua zona de ação. Modelar um jogador para um comportamento zonal pressupõe em primeiro lugar fazê-lo interiorizar as vantagens desta forma de abordagem: deixa de ser um comportamento “individual” para ser um comportamento de interdependência. Não só com os seus colegas de setor, mas entre toda a equipa (a equipa joga em “rede”); as referencias deixam de ser individuais e passam a ser “colectivas”; a posição da bola passa a ser o referencial mais importante para ajustar posicionamentos; depois há um conjunto enorme de sub-princípios relacionados com esta forma de abordagem que carecem de muito tempo para maturar (distancia entre jogadores, pressão sobre o portador da bola e adversário, coberturas, etc).
Ultrapassar os obstáculos carece de muito treino e paciência. Se calhar o exemplo dado por Menotti em determinada altura ajuda, e muito, a entender as vantagens e desvantagens de jogar “individual” ou jogar “zona”… “Uma casa estava guardada por 2 cães, ao ser assaltada um dos ladrões chamou a atenção dos cães e logo estes ”atacaram” o ladrão e perseguiram-no abandonando a casa, o outro ladrão entrou nela sem dificuldade. Numa outra casa que tinha dois cães “guardiões”, os ladrões utilizaram a mesma estratégia, os cães mostraram-se na mesma agressivos mas não largaram a porta da casa…
LE – Qual é, para si, a característica mais importante de um jogador de futebol moderno?
CC – Ontem hoje e amanhã… inteligência. O jogo de futebol é um exercício de inteligência. Não inteligência académica, mas sim inteligência na ação, em movimento… Lamento que muitos estejam a destruir a importância do talento e criatividade (associados à inteligência). Mas por muitas voltas que quiserem dar, os melhores, aqueles que marcam a diferença e fazem as pessoas irem aos estádios, serão sempre os mais talentosos. Não os que correm mais rápido ou que que saltam mais alto…
LE – Como é que conheceu o Lateral Esquerdo? Qual é a sua opinião sobre o blogue?
CC – Conheci o vosso blogue nas redes sociais. Parei um dia a ler um artigo e pensei… este tipo (ou tipos) jogaram futebol… fiquei um leitor assíduo pelo conhecimento específico do que analisam. Parabéns.

LE – Fantástico Mister Carvalhal! e para quem, como nós, quiser seguir o mister Carlos Carvalhal é só carregar aqui.
Sobre Paolo Maldini 3828 artigos
Pedro Bouças - Licenciado em Educação Física e Desporto, Criador do "Lateral Esquerdo", tendo sido como Treinador Principal, Campeão Nacional Português (2x), vencedor da Taça de Portugal (2x), e da Supertaça de Futebol Feminino, bem como participado em 2 edições da Liga dos Campeões em três anos de futebol feminino. Treinador vencedor do Galardão de Mérito José Maria Pedroto - Treinador do ano para a ANTF (Associação Nacional de Treinadores de Futebol), e nomeado para as Quinas de Ouro (Prémio da Federação Portuguesa de Futebol), como melhor Treinador português no Futebol Feminino. Experiência como Professor de Futebol no Estádio Universitário de Lisboa, palestrante em diversas Universidades de Desporto, Cursos de Treinador e entidades creditadas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Autor do livro "Construir uma Equipa Campeã", e Co-autor do livro "O Efeito Lage", ambos da Editora PrimeBooks Analista de futebol no Canal 11 e no Jornal Record.

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