
Ao contactar o Mister Carvalhal para que nos possibilitasse esta série de questões, voltámos a encontrar um treinador do alto rendimento extremamente receptivo ao nosso apelo. Tenho a agradecer-lhe, por isso, a disponibilidade que mostrou desde logo, e o tempo que perdeu com estas antigas glórias do futebol mundial. Agradecer ainda mais pela forma como educa quem o ouve e lê, tornando sempre mais rica a cultura de quem quer saber mais e é, como nós, apaixonado pelo jogo da inteligência e qualidade técnica, da organização colectiva, em sobreposição ao resto. Estamos muito orgulhosos por saber que nos lê, que nos segue, que partilha alguns dos nossos pensamentos.
Lateral Esquerdo (LE) – Quem é o melhor jogador que viu jogar? Se não quiser especificar um, construa o seu onze de sonho…
Carlos Carvalhal (CC) – Maradona. A minha infância foi preenchida pela magia de Maradona. Num destes dias conheci-o aqui no Dubai. Falei com ele, fiz-lhe uma comunicação sobre o nosso trabalho no Al Ahli e tirei umas fotos. Senti-me um menino feliz ao pé do meu ídolo de adolescência.
Por ironia do destino, conheci Zico aqui também. Falta conhecer Cruyff…
LE – Existe algum/ns momento/s do jogo que considera mais importantes do que outros?
CC – O jogo é “Uno”, “Indivisivel” e fluído. Não há momentos mais importantes do que outros, todos são importantes porque estão ligados uns com os outros.
LE – Quais são as suas referências ao nível do treino, e do jogo?
CC – As nossas referencias são sempre as melhores equipas do mundo. Quando treinávamos na terceira divisão (por exemplo o Leixões) os nossos referenciais eram sempre as equipas de top. As vezes poderia custar uns pontos no nosso campeonato, mas era aquilo que perseguíamos. Talvez devido a esse facto chegámos na altura à final da Taça de Portugal. Continuamos na mesma esteira ainda hoje… “queres ser como os Grandes, faz como eles”.
LE – Quais foram as principais dificuldades nos países fora de portugal ao nível de treino e de aquisição? O que foi mais difícil de ensinar?
CC – O treinador Português é muito evoluído e adapta-se com facilidade ao meio onde está a trabalhar. Para além das competências tácticas e técnicas o treinador luso é muito forte na componente emocional, cria laços com facilidade e isso também contribui para fazer a diferença. A dificuldade muitas vezes é a ideia arcaica do jogar que persiste em alguns países. As dificuldades, algumas vezes, passam por convencer os jogadores e a estrutura que há outros caminhos para preparar uma equipa para jogar. Passando a fase da desconfiança, o treinador português marca claramente a diferença.
LE – Há alguma coisa que considere que seja transversal em todos os modelos?
CC – Cada treinador imprime uma impressão digital nas equipas que organiza. Podem existir alguns aspectos que sejam comuns, mas no detalhe serão sempre diferentes. E no detalhe é que está a diferença para melhor ou pior.
LE – Quando chega a um clube novo, quais são as principais preocupações ao nível da operacionalização? Quais são (normalmente) as apostas para que a equipa fique o mais rapidamente possível a jogar como quer?
CC – O único caminho para modelar uma equipa é o treino. Desde o primeiro minuto de treino, procuramos através de exercícios Específicos incorporar a nossa Ideia de Jogo, de forma a chegarmos à ideia utópica da nossa forma ideal de jogar. Utópica porque nunca lá chegaremos… Ao modelarmos a equipa através dos Princípios do nosso Jogo para os 4 momentos de jogo – sem nunca esquecer a ligação entre estes – há sempre algumas coisas que podemos melhorar, e outras coisas que se vão perdendo no decorrer do tempo e jogos. No fundo, modelar uma equipa é uma permanente construção/reconstrução.
LE – Exemplifique algum princípio que queira ver sempre e tenha sempre conseguido implementar. Ou o inverso, um relato de algo que ele queira mas que em determinado momento não tenha dado. E o porquê?
Pela minha experiência, o mais difícil de incorporar nos jogadores que chegam às nossas equipas pela primeira vez é o momento de transição defensiva. Ter a posse da bola e perde-la exige uma mudança mental muito brusca para a voltar a recuperar. Exige muito treino e muita paciência para chegar a um nível elevado. Se for para reagir e voltar à “posição” é fácil, mas se queres em função da identificação do momento do jogo uma reacção organizada, Intensa e com qualidade, vai exigir muito dos jogadores e principalmente de ti. Ter a bola para atacar é mais atrativo para os jogadores, logo será mais fácil pelo lado emocional a absorção dos princípios de jogo. Ganhar a bola para atacar (transição ofensiva) é igualmente atrativo, e os jogadores chegam ao que queremos com relativa facilidade. A forma como trabalhamos a nossa organização defensiva é muito bem recebida pelos jogadores, principalmente pela eficácia das ações. Esta, por ser muito complexa leva algum tempo incorporar os pormenores (sub dos sub princípios) mas como o fazemos com complexidade crescente o entusiasmo e a evolução é constante.
LE – Resuma cada momento do jogo, do seu modelo de jogo, em duas palavras no máximo.
CC – Bolas paradas ofensivas e defensivas – Concentração e Eficácia.
Organização ofensiva – Talento e Inteligência.
Transição defensiva – Interpretação e Intensidade.
Organização defensiva – “Rede” e Organização.
Transição ofensiva – Interpretação e Primeiro passe.
LE – Como é pensar como mostrou no seu livro – Recuperação é muito mais do que recuperar – jogar zona, e encontrar jogadores que toda vida conheceram o h-h? Quais são as principais dificuldades no ensino de comportamentos zonais, e como as ultrapassa?
CC – Para quem tem um passado de muitos anos a jogar HxH não é fácil modelar um jogador para ter um comportamento zonal. Este, tem como principal referencia o jogador adversário, a sua “anulação” e muitas vezes faz perseguições ao adversário direto para fora da sua zona de ação. Modelar um jogador para um comportamento zonal pressupõe em primeiro lugar fazê-lo interiorizar as vantagens desta forma de abordagem: deixa de ser um comportamento “individual” para ser um comportamento de interdependência. Não só com os seus colegas de setor, mas entre toda a equipa (a equipa joga em “rede”); as referencias deixam de ser individuais e passam a ser “colectivas”; a posição da bola passa a ser o referencial mais importante para ajustar posicionamentos; depois há um conjunto enorme de sub-princípios relacionados com esta forma de abordagem que carecem de muito tempo para maturar (distancia entre jogadores, pressão sobre o portador da bola e adversário, coberturas, etc).
Ultrapassar os obstáculos carece de muito treino e paciência. Se calhar o exemplo dado por Menotti em determinada altura ajuda, e muito, a entender as vantagens e desvantagens de jogar “individual” ou jogar “zona”… “Uma casa estava guardada por 2 cães, ao ser assaltada um dos ladrões chamou a atenção dos cães e logo estes ”atacaram” o ladrão e perseguiram-no abandonando a casa, o outro ladrão entrou nela sem dificuldade. Numa outra casa que tinha dois cães “guardiões”, os ladrões utilizaram a mesma estratégia, os cães mostraram-se na mesma agressivos mas não largaram a porta da casa…
LE – Qual é, para si, a característica mais importante de um jogador de futebol moderno?
CC – Ontem hoje e amanhã… inteligência. O jogo de futebol é um exercício de inteligência. Não inteligência académica, mas sim inteligência na ação, em movimento… Lamento que muitos estejam a destruir a importância do talento e criatividade (associados à inteligência). Mas por muitas voltas que quiserem dar, os melhores, aqueles que marcam a diferença e fazem as pessoas irem aos estádios, serão sempre os mais talentosos. Não os que correm mais rápido ou que que saltam mais alto…
LE – Como é que conheceu o Lateral Esquerdo? Qual é a sua opinião sobre o blogue?
CC – Conheci o vosso blogue nas redes sociais. Parei um dia a ler um artigo e pensei… este tipo (ou tipos) jogaram futebol… fiquei um leitor assíduo pelo conhecimento específico do que analisam. Parabéns.
LE – Fantástico Mister Carvalhal! e para quem, como nós, quiser seguir o mister Carlos Carvalhal é só carregar aqui.
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